sábado, setembro 20, 2008

A nova Rússia

(Um trabalho de Nuno Rogeiro, para o Jornal de Notícias)

I
Os factos, no terreno, são poderosos. É muito provável que, apesar da ajuda americana, da visita da mulher de John McCain, dos protestos da OTAN, das reclamações junto da Justiça internacional, a Geórgia tenha de (sobre)viver, permanentemente amputada de dois territórios vitais: a Ossétia do Sul e a Abkházia.
Não é também impossível que na região de Adjara, na costa do Mar Negro, onde fica o porto de Batumi, regresse um vento autonomista, que pode derivar para uma nova independência. Na melhor das hipóteses, a Geórgia será um estado retalhado e anormal, expropriado de um acesso marítimo largo e pleno, impossibilitado de construir vias de comunicação lógicas, de montar gasodutos e oleodutos pouco dispendiosos, de gerir, em plenitude, o espaço urbano e rural.
Por agora, a Duma quer apenas a "legalização" do separatismo georgiano. Mais tarde, se a presidência Medvedev concordar, pode propor a integração, na Federação russa, dos novos estados, onde se usa já o passaporte moscovita.
Claro que esta via contraria a posição da Rússia na questão do Kosovo, onde se mostrou adversa ao reconhecimento "unilateral" da ex-província jugoslava.
Claro que esta opção destrói o argumentário moscovita, até agora baseado, em primeira linha, no direito internacional e na estabilidade dos tratados.
Claro que o mesmo caminho pode fortificar o separatismo dentro da Rússia, e o regresso da questão chechena.
Mas esta foi a linha vermelha que o Kremlin traçou no chão. É muito clara, e foi admitida recentemente por um vice-ministro dos negócios estrangeiros da Rússia: Moscovo não engolirá todas as soluções geopolíticas que o Ocidente lhe proponha, nem aceitará todos os "factos consumados" de expansão da OTAN. Recuou no caso da Polónia, Hungria, República Checa e Eslováquia. Voltou a recuar no caso das repúblicas bálticas. Mas não recuará mais.
O ministro dos Negócios Estrangeiros inglês, David Milliband, diz acertadamente que, na Eurásia, não há "ex-URSS", mas sim um novo mapa de estados independentes, nascido depois de 1991. De qualquer maneira, os factos a que aludimos são mais fortes do que a "legalidade": a Rússia reclama o direito de proteger, mesmo pelas armas, os seus cidadãos fora de fronteiras, ou as comunidades russófonas alegadamente ameaçadas, naquilo que foi a União Soviética. 
Isto cria um precedente, como é óbvio. Na Europa, muitos estados possuem laços de língua e cultura com grupos étnicos que ficaram separados da pátria-mãe. Polacos, alemães, italianos, checos, húngaros, para citar só alguns, existem em comunidades definidas, dentro de países onde não se fala o seu dialecto, e onde vivem como povos "integrados". O que seria se as nações de origem quisessem "protegê-los", autonomizá-los ou "libertá-los"?
O espectro de uma nova desordem europeia existe, e a comunidade regional de estados necessita, urgentemente, de uma conferência mediadora. Esta deve acordar, relembrar, reforçar ou criar regras de coexistência, resolução de conflitos, definição espacial e vizinhança, antes que os apóstolos do caos triunfem.
A "Nova Rússia" terá de fazer parte desse acordo. É um erro grave cortar todas as linhas de contacto com Moscovo. Mas há que acertar princípios de equidade, impedindo a progressão militarista e o crescendo de ameaças. 
O diálogo não pode resumir-se a uma medição de forças. Ou voltaremos ao tempo em que as fronteiras são definidas pelo alcance da artilharia.

II
Sobretudo quando levados à letra, muitos paralelos históricos são redutores e perigosos.
No fundo, cada época tem a sua lógica, dimensão e circunstâncias, e as transposições podem resultar caricaturais. Mas quando o político radical francês Edouard Herriot chegou a Moscovo, em 1922, o fresquíssimo estado euro-asiático (a nascente URSS) tê-lo-á surpreendido tanto como acontece com os nossos contemporâneos, face ao regime pseudobicéfalo de Putin/Medvedev.
Herriot escreveu "A Rússia Nova" em tempo de Novo Plano Económico. 
Era então preciso, sob Lenine, sair dos desastres do comunismo de guerra, do radicalismo bolchevique, do dogmatismo, das "medidas de emergência" adoptadas para resolver o conflito civil e a intervenção estrangeira. Tratava-se de, com "realismo", reconstruir uma grande entidade política, sob uma doutrina "científica" nova. Foi um curto tempo de liberalização da vida privada, individual e colectiva. 
Claro que a Rússia, reino autónomo desde o Kievan Rus do fim do século IX, era a chave dessa "ressurreição", como se compreende hoje, 17 anos depois da queda do Muro de Berlim. 
Entre 1922 e 1991, a Rússia serviu-se do sovietismo como justificação do império, teologia política e propaganda. 
Na América, havia a Disneylândia e a Coca-Cola, a pastilha elástica e o basebol, os Cadillac e os frigoríficos. E John Wayne. Todos foram alvo da curiosidade de Nikita Krushev, na famosa visita de 1959. Quanto à Rússia, exportava ideologia. Mas esta, o "comunismo", era um mero instrumento, abandonado quando se mostrou inútil. 
Pelo caminho ficaram os milhões de fiéis que, em todo o Mundo, acreditavam. Um conselheiro de Putin disse-me um dia: "O problema de muitos comunistas portugueses é que sabiam tudo da URSS, mas pouco da Rússia. Têm assim imensas dificuldades em perceber o que se passa em Moscovo".
A partir de 1998, quando (ainda sob Ieltsin) assume vastas responsabilidades de segurança,Vladimir Putin surge como o produto, e não a causa, de uma decisão de vários sectores da "sociedade do poder" russa. Da indústria à ciência, dos militares aos tecnocratas, dos burocratas aos novos empresários, dos agentes secretos aos novíssimos políticos, concluía-se ser preciso travar a decadência e o caos, bem visíveis na humilhação no Cáucaso, entre 1994 e 1996.
Daí às prioridades da sua prolongada presidência, entre 1999 e 2008, vai um passo lógico. Primeiro, tratou-se de executar, agora "bem", uma nova guerra "defensiva" na Chechénia. Depois, foi preciso disciplinar, modernizar, moralizar e tornar eficiente o complexo militar e securitário, num processo ainda em curso, previsto para um desenlace em 2030. A blitzkrieg na Geórgia foi uma espécie de "caso prático" desse programa.
Em Abril de 2000, aprova-se uma nova doutrina de defesa (a penúltima). As armas atómicas, consumando o conceito de 1993, passam a ter uma possível utilização "preventiva", não só em caso de ameaça nuclear, mas também de outras armas de destruição massiva, ou de "uma grande ofensiva convencional", que "ameace a sobrevivência" da nação. Comentando os resultados do exercício "Zapad 99", um ano antes, o general Yakovlev já falara da possibilidade de um uso limitado do nuclear promover, paradoxalmente, o "desescalar" de um conflito.
Representando 40% da Europa, com 16 vizinhos, 60 mil quilómetros de fronteiras, o maior território e reservas minerais do Mundo, a Nova Rússia começava a sentir-se forte, mas ameaçada, interna e externamente. 
Como se verá.

III
"Tyazhelo v uchenii v legko": como dizia o conde Generalíssimo Alexandre Suvorov (o "camarada" dos soldados), morto em 1800 sem perder uma batalha, "é preciso treinar duramente, para lutar com facilidade".
Vladimir Putin teve tempo, e razões, para pensar nisso, na última década. Foram anos desastrosos, no meio da corrupção, do crime organizado a infiltrar (e a dirigir) as fileiras, da decadência de meios, do mercenariato e da incompetência, do "Kursk", do teatro de Moscovo, de Beslan.
Assim, apesar de todas as próximas guerras poderem ser "híbridas", isto é, "político-militares", e de a crise na Geórgia continuar a ter uma via diplomática (o principal sinal, por agora, é a não-integração dos separatistas na Rússia), Moscovo reformou os quartéis, repensou os comandos, investiu na educação e no treino, modernizou e disciplinou. E preparou as suas forças armadas para cenários convencionais, "atípicos" e, como vimos, nucleares.
O mais recente processo de transformação, centrado agora no Ministério da Defesa e no Estado-Maior, começou a ter documentos de reflexão importantes, esboços e propostas de reformulação (da doutrina estratégica e do sistema de forças), a partir de 2004. 
No projecto de "política social" das forças armadas, aplicável até 2020, prevê-se a melhoria substancial de remunerações e regalias, em troco da profissionalização quase integral. No fundo, o absentismo, a embriaguês e a droga, a prepotência, a desmoralização, o banditismo e os biscates empresariais, nas horas vagas, a falta de respeito pelos subordinados, o motim destes e outras doenças seriam resolvidos pelo aumento dos patamares socioeconómicos e pela introdução de uma gestão moderna dos exércitos.
Havia depois, e antes, o gigantesco caminho do material e da estrutura, das operações e da direcção. Em 2006, nas diversas reflexões do general Yuri Baluievski, o primeiro comandante-chefe a presidir à nova "revolução dos assuntos militares", estava claro o que faltava. A saber, melhor relação entre poder combatente e logística ("músculo" e "gordura"), qualificação do pessoal, pré-posicionamento eficaz, adaptação integral à guerra electrónica e de informação, combinação e conjunção de forças (OGV, no acrónimo russo), integração das unidades especiais na chefia de informações, vulgo "serviço secreto militar" (GRU), mobilidade e automação, modernização dos sistemas de comando, comunicações, controle, computadores, informações, vigilância e reconhecimento (C4ISR), capacidade expedicionária e de projecção.
Muitos destes elementos estão ainda em introdução. Um especialista queixava-se, há pouco tempo, da relativa lentidão na entrada em serviço dos "Typchak", as novas gerações de aeronaves não tripuladas de observação e combate (UAV/UCAV).
Outro projecto, mais controverso, era o da complementação (não substituição) dos "distritos militares", considerados em parte ultrapassados, e a criação "experimental" de três comandos "regionais": meridional, cobrindo o Cáucaso e a região Volga/Urais, oriental (para a massa asiática, o extremo leste e a Sibéria) e ocidental (abrangendo a Europa, baseado em Moscovo e S. Petersburgo).
Por fim, quanto à decisão de emprego de forças, houve também mudanças radicais de "filosofia". A começar, como se verá, pelas intervenções fora da Rússia, a proteger os "interesses vitais do Estado". Que podem ter costas largas, como noutros países.

IV
Enquanto a Rússia parece unida, face à Europa e à questão da Geórgia, a União Europeia continua visivelmente dividida. Como se diz nos corredores de Bruxelas, desdramatizando, é um "desacordo quanto aos meios, mas não quanto aos princípios" (sic).
Que "princípios"? Respeitar a integridade territorial dos novos e velhos estados, resolver pacificamente os conflitos fronteiriços, envolver organizações regionais e a ONU, sempre que haja estatutos contestados. Os mesmos membros da EU e da OTAN dizem que o Kosovo não foi "excepção" a este raciocínio, porque passou por um longo período de "transição", sob forma de protectorado internacional, mandatado pelas Nações Unidas, e optou por uma independência também vigiada. Por outro lado, o estado a que formalmente pertencia, a Jugoslávia, deixara de existir, e toda a sua estrutura ficou, de facto e de direito, sob negociação.
E quais os "meios", frente à Rússia? Diplomacia "musculada" ou alusões, mais ou menos vagas, a fórmulas militares? Sanções ou diálogo "diferente"? Negócios como antes, ou "suspensão"? Revisão completa de relações, ou mera microdiscussão técnica? Inquérito policial a "quem disparou primeiro", na Ossétia do Sul, ou cheque em branco à versão das partes? Conselho de moderação a Saakashvili, ou conselho de moderação a Medvedev/Putin?
Claro que os "meios" diferentes reflectem "perspectivas" diversas.
Citando o MNE português, para uns a Rússia é um "inimigo", e para outros representa apenas um "risco". Ou seja: uns olham-na como ameaça permanente, insolúvel sem conflito, outros encaram-na como ameaça episódica, resolúvel sem força. 
Uns entendem-na como actor estranho ao "Ocidente", enquanto que os outros a consideram uma parte (porventura "estranha", a espaços) do mesmo Ocidente. 
Uns lembram as guerras em que a velha Rússia participou, ao lado das potências europeias e "ocidentais", outros os conflitos em que se opôs a elas.
Mas o que pensa a própria Rússia? Para muitos, o discurso de Putin do ano passado, em Munique, anunciou a filosofia.
Segundo o ex-presidente e actual chefe de Governo, depois acompanhado pelo antecessor/sucessor Medvedev, pelo MNE Lavrov, pelo ex-MDN Ivanov, e por declarações e artigos de vários generais e ex-generais, os princípios basilares são, sem distinção de precedência:
a) Rejeição da ideia de uma "hiperpotência" como árbitro do sistema internacional.
b) Reconhecimento dos "interesses privilegiados" de Moscovo, em áreas do Mundo onde os russos vivem, como comunidade importante.
c) Admissão de um plano de protecção desses "interesses", e de resgate de russos em risco, fora de fronteiras, sempre que não haja outros meios.
d) Adopção, pela Rússia, dos grandes princípios da "guerra contra o terrorismo", mas incluindo aí a luta aos grupos alegadamente "nacionalistas", como a guerrilha chechena.
e) Admissão de que a "soberania" da Rússia é o valor supremo.
f) Possibilidade de intervenção "dissuasora" no exterior, face a um perigo real e iminente.
g) Inclusão da protecção da economia nacional e dos recursos energéticos, nas grandes linhas da política de defesa e segurança.
Para sustentar estes fins, a reforma militar de que vimos falando é um elemento. Mas esta é apenas parte de uma mudança mais geral. Nas palavras do ex-comandante da frota do Mar Negro, almirante Eduard Beltin, "muitos não percebem que as forças armadas não podem ser melhores, ou piores, do que a sociedade que as fornece e forma".