segunda-feira, agosto 18, 2008

Astrologia aplicada

Na parte inicial da sua "Vida Ignorada de Camões", falando sobre as circunstâncias do nascimento do poeta, nomeadamente data e local, José Hermano Saraiva refere-se ao real desconhecimento que temos sobre os dados biográficos da figura maior da nossa literatura e aproveita para lhe contrapor o atrevimento daqueles que até a sua hora de nascimento afirmam ter descoberto. A menção é feita num tom algo desdenhoso, e tem que se dizer que não é nada elegante. Quem não conheça fica sem saber, mas quem tenha lido percebe imediatamente que o alvo é Mário Saa e as suas "Memórias Astrológicas de Luís de Camões". Ora se assim é porque não identifica expressamente Mário Saa e o seu livro? A pergunta não é dispicienda, sobretudo porque à medida que se avança na leitura da "Vida Ignorada de Camões" vai-se acentuando a sensação de que a não existir a outra talvez esta obra não existisse, ou pelo menos seria diferente. Não é preciso que partilhem as conclusões para que um trabalho seja devedor de outro. Por vezes até para se afastar delas o segundo reflecte o quanto ficou tributário do primeiro.
Eu não sei, nem tenho modo de saber, se o grande amor de Camões se chamava Violante de Andrade ou Violante de Ataíde, nem mesmo se era Violante. Não tenho sequer a certeza se esse amor existiu, ou se é mera invenção do poeta. Esses amores nascem frequentemente das necessidades poéticas. Estou, todavia, aberto a todas as hipóteses que os entendidos queiram apresentar. (Enfim, confesso que não levaria a bem que algum historiador ou literato da moda venha dizer-me que afinal Camões era gay e só passou a vida a ficcionar paixões femininas para enganar a inquisição e a homofóbica sociedade do seu tempo - e temo que isso venha a acontecer). Leio, pois, com interesse o que Saraiva e Saa escrevem sobre esse assunto, e o mais que um e outro declaram ter desvendado na vida do nosso épico.
Consigno portanto aqui que os livros de Mário Saa e José Hermano Saraiva são a meu juízo duas obras muito curiosas, e deveras úteis quanto mais não seja para despertar a chama dos estudos camonianos. O autor do Ervedal tinha ideias muito próprias, e para além das "Memórias Astrológicas" ainda publicou um opúsculo intitulado "Camões no Maranhão", onde vai mais longe na exposição da sua singular biografia de Camões. Ainda que nos faltem os conhecimentos de astrologia para avaliar o rigor dos raciocínios e deduções apresentados, não custa observar que em sede de interpretação dos textos o entendimento seguido é pelo menos discutível ou duvidoso. Mário Saa era um poeta, dotado notoriamente de faculdades criativas que facilmente se podem impor e sobrepor à prosaica realidade.
Mas, que dizer da prodigiosa imaginação do Prof. Saraiva? O que me pareceu mais divertido da leitura desta sua "Vida Ignorada" é que o autor consegue levantar uma intriga histórica de alto lá com ela, uma conspiração anticamoniana com laivos de telenovela e condimentos que fazem lembrar o Código Da Vinci, ou o José Rodrigues dos Santos. É um bom romance, digo-vos eu. Quanto ao rigor, existe no mercado desde 1994 um livrinho onde Vítor Manuel Aguiar e Silva descasca as artificiosas construções de Saraiva. Nada, porém, que retire o sabor da leitura - é uma obra de ficção histórica a muitos títulos precursora do que actualmente está em voga, e incomparavelmente mais erudita.
De resto, penso que nestes temas históricos não se deve assumir uma postura crispada, a exigir tomadas de partido que nem questões de honra familiar. As discussões a propósito de Camões costumam entre nós levantar susceptibilidades inauditas; em 1948, quando foi da estreia do filme "Camões", de Leitão de Barros, com António Vilar no protagonista, levantou-se furibunda a pena temível de Alfredo Pimenta, clamando contra as inexactidões factuais do enredo. E o motivo de maior indignação estava precisamente nos amores de Camões, que aí têm por destinatária a Infanta D. Maria (mais de acordo com as exigências de um filme, convenhamos). O desgraçado Leitão de Barros ainda se refugiou atrás da autoridade de Afonso Lopes Vieira, que o tinha ajudado com o argumento, mas este também não foi poupado pelo estadulho de Pimenta. Outros tempos, outras guerras.