terça-feira, agosto 19, 2008

Afirmação, repetição, contágio

Ao explicar a sua particular visão da "era das multidões", Gustave Le Bon deixa claro que aquilo que confere uma identidade, e uma "alma colectiva", ainda que transitória, ao conjunto de indivíduos reunidos em multidão, são as ideias comuns que a enformam e lhe dão uma unidade no sentir e no agir.
A nossa época é caracterizada pelo domínio das multidões, mas estas são condicionadas pelas ideias que absorveram. Naturalmente, por sua natureza elas não podem absorver conceitos complexos ou raciocínios elaborados. Interiorizam ideias simples, fórmulas que com facilidade lhe dêem uma explicação para a realidade e lhe indiquem objectivos a prosseguir. Normalmente são meras vulgatas, versões simplificadas de filosofias que muito poucos leram. Os grandes pensadores são portanto determinantes na marcha da história, mas só a influenciam à distância.
Pode constatar-se que Gustave Le Bon, apesar de não ter lido António Gramsci, nem Alain de Benoist, já sabia que a cultura está primeiro: os mecanismos que numa sociedade condicionam a visão do mundo interiorizada pelos membros dela são realmente determinantes na marcha dos acontecimentos.
Em suma: no nosso tempo quem manda são as multidões, e estas actuam conforme as concepções que as impregnam. E inevitavelmente observa o autor, sociólogo e psicólogo, a questão fundamental que daí resulta: é preciso estudar o modo como se implantam no corpo social essas ideias, os conceitos comuns que vão transformar uma massa informe de indivíduos naquilo que ele chama uma multidão. Neste ponto tropeça-se numa conclusão óbvia: uma multidão tem condutores, seja aqueles que conscientemente a conduzem, pelo exemplo, pelo prestígio, ou por qualquer outra forma ou razão, seja aqueles que a condicionam, nomeadamente por terem nas suas mãos os mecanismos produtores do tal substracto ideológico que vai dar vida à multidão.
Recorde-se que para Le Bon só existe uma multidão quando uma aglomeração humana possui características próprias que a diferenciam de cada indivíduo que a compõem ("La personnalité consciente s'évanouit, les sentiments et les idées de toutes les unités sont orientés dans une même direction. Il se forme une âme collective, transitoire sans doute, mais présentant des caractères très nets. La collectivité devient alors ce que, faute d'une expression meilleure, j'appellerai une foule organisée, ou, si l'on préfère, une foule psychologique. Elle forme un seul être et se trouve soumise à la loi de l'unité mentale des foules.").
A importância dos condutores, e da produção intelectual com que se alimenta a multidão e se lhe vai criando a sua conformação mental, ressalta assim em toda a sua plenitude. Mesmo os tais filósofos que à distância acabam por ter papel decisivo na marcha dos acontecimentos só assumem relevância operacional através dessa intermediação. São os seus ecos, tornados acessíveis pela simplificação e pela generalização, aquilo que chega às massas.
E como se implantam então nos indivíduos as ideias comuns que os transformarão numa multidão efectiva e actuante, ainda que inconsciente (Gustave Le Bon sublinha que não é pela razão que se edificam as crenças que abalam o mundo)?
O autor explica os mecanismos, que sintetiza em três palavras: afirmação, repetição, contágio.
A afirmação fornece a resposta simples e elementar necessária a satisfazer as interrogações dos indivíduos. Evidentemente, tem que ser acessível a qualquer um, e ir de encontro às questões que se colocam à generalidade. Dispensa e substitui a demonstração. Ganha vantagem com a firmeza e a clareza com que for transmitida; a afirmação não permite margens para a dúvida, as hesitações, a tibieza. A sua credibilidade depende estreitamente da convicção com que chegar aos destinatários.
A repetição é o meio de garantir o triunfo da afirmação. Uma ideia repetida até chegar a todos e todos a sentirem como comum vence resistências, torna-se aceitável, generaliza-se, acaba por ser interiorizada como pacífica e incontroversa.
O contágio é o resultado prático da afirmação e da repetição, na sua marcha progressiva através das sociedades humanas. Traduz-se na transmissão sucessiva de indivíduo para indivíduo das ideias e concepções que se pretendeu implantar por meio de constante afirmação e repetição. Gustave Le Bon relaciona este "contágio" com a "sugestão", observando que a difusão frequentemente opera por essa forma (sugerindo, sugestionando), alargando-se a cada vez mais indivíduos.
Uma lição de política, esta "Psicologia das Multidões".

2 Comments:

At 9:33 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Excelente exposição e definição perfeita das multidões.
As multidões são por natureza boas e generosas e os grandes demagogos, sabidos e cínicos até à medula, estão conscientes desses valores e é deles que se valem para as seduzir e conduzir até onde desejam. Normalmente é para o abismo. As multidões, porque não lhes vêem a alma, adoram os discursos dos oradores julgando-os genuínos, ainda que eles sejam os maiores demagogos do século. Mas elas, multidões, negam-se a aceitá-lo como evidência. No meio das multidões há sempre alguns cépticos, mas lá encontram-se também obrigatòriamente os oficiais de serviço à sessão, aqueles que têm por missão estabelecer a ponte ou voltagem entre o palco, palanque ou tribuna e o que é lá proferido e as massas, convencendo estas da absoluta veracidade do que estão a ouvir e da inexcedível honorabilidade do político em presença. A partir do momento que os cépticos se convertem em crentes ou semi-crentes, o grande demagogo
venceu mais uma batalha. E eles nunca se cansam - como temos visto ao longo de dezenas d'anos e não só em Portugal - por isso mesmo foram escolhidos para o cargo. Limitam-se a desempenhar o seu papel de actores exímios.
Os demagogos sabem que as multidões têm uma alma permeável e receptiva a tudo e são completamente influenciáveis. Para as cativarem e convencerem da verdade da sua oratória demagógica, não é preciso muito, basta terem um bom conhecimento da psicologia das massas, que eles dominam em profundidade, demagogia a rodos, de que as multidões não se apercebem antes a aceitam como firmeza de carácter e integridade pessoal e política e finalmente possuirem a suficiente dose de maldade intrínseca de que se valem para, fingindo puxá-las para as suas nobres causas, arrastá-las para a sua própria desgraça. Mas as massas hipnótizadas pelos oradores demagogos, que sabem como adulá-las à perfeição, anulando-lhes a vontade própria, jamais se apercebem do inferno em que aqueles as vão fazendo cair a pouco e pouco. Ou se por hipótese isso acontecer e, raramente embora, ás vezes acontece, será sempre a uma parte ínfima das massas mais esclarecidas, mas que nunca são em número suficiente para destronar os demagogos. Contudo, se por absurdo tal se verificar numa percentagem maior do que a esperada pelos demagogos, que os preocupe sèriamente, eles sabem perfeitamente como dar a volta à situação. As multidões, dado o seu carácter de crentes absolutos nos grandes oradores demagogos, raramente põem em causa as suas qualidades políticas e pessoais (mesmo que os seus graves defeitos lhes entrem pelos olhos adentro). Foi justamente por isso que eles foram escolhidos para o cargo que desempenham, para o qual afincadamente se prepararam e trabalham, isto é, para aparentarem uma coisa e serem outra totalmente oposta. Neste jogo de vida ou de morte, como não podia deixar de ser, a perda está quase sempre do lado dos psicològicamente mais fracos, porque indefesos, que são as multidões e o ganho no dos mais fortes, os demagogos.
Mas é claro, há as excepções que confirmam a regra. Desmascarar os demagogos não é fácil, eles sabem como proteger-se e contornar os problemas. Não obstante isso pode acontecer (e já tem acontecido), às vezes por erro cometido por eles próprios, de cuja gravidade não se apercebem e/ou desvalorizam as consequências, ou por motivos fortuitos. Aí os valores alteram-se e os campos invertem-se. Os castelos de cartas desmoronam-se e a verdadeira natureza dos demagogos é posta a nu. As massas apercebem-se finalmente do logro em que caíram e os demagogos têm os dias contados.
Se quisermos fazer uma analogia possível, perfeitamente constatável, da similitude que existe entre multidões que estão à mercê de quem as sabe seduzir, seja através de discursos inflamados ou música electrizante, isto é, as que escutam os oradores demagogos nas grandes manifestações e as que assistem aos grandes concertos dos grupos rock, temos por exemplo, entre muitos outros, o depoimento sincero desse extraordinário vocalista/compositor do Mamma's and Papa's, que foi John Phillips: "pela veneração com que éramos escutados e pela entrega absoluta que pressentíamos da parte deles (público), nós podíamos levá-los a fazer aquilo que quisessemos, bastava pedir-lhes e eles obedeceriam automàticamente". Exactamente o mesmo se passa com as multidões que escutam os demagogos.
Maria

 
At 9:53 da tarde, Blogger Manuel said...

Gustave Le Bon declara que a música é por excelência "a arte das multidões".

 

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