segunda-feira, junho 02, 2008

A APATIA DA FORTE GENTE

(artigo de João César das Neves)

A economia portuguesa é uma das mais flexíveis e dinâmicas do mundo. Esta frase, hoje tão controversa e quase contraditória, permanece indiscutivelmente verdadeira. As provas são fáceis de apresentar.
Portugal tem sido um sucesso notável de desenvolvimento registando, no produto por habitante em paridades de poder de conta, a oitava taxa de crescimento mais elevada do mundo na média de 1960 a 2001. Só sete países no planeta melhoraram mais que nós na segunda metade do século XX. Na União Europeia, o "bom aluno luso" ainda é exemplo: mantém-se como uma das economias pobres que mais se desenvolveu nos primeiros três anos após a adesão, só atrás dos três bálticos e Eslováquia. Além disso, nos 20 anos de 1980 a 2001, tivemos a taxa de desemprego mais baixa da Europa do Sul e a terceira mais baixa dos Doze da UE.
Outros sinais são claros. O nosso país permanece a única economia mundial onde um plano de estabilização do FMI correu bem. Aliás, por duas vezes, em 1977 e 1983. Em ambos os casos, a austeridade funcionou rapidamente, resolvendo o desequilíbrio em menos de três anos. Na sequência, conseguimos ser um dos poucos países a viver 13 anos no sistema cambial de crawling-peg, mecanismo que conta mais fiascos que sucessos na sua história. É precisa muita flexibilidade para sustentar a rigidez dessa disciplina.
Também os importantes fluxos migratórios, característica histórica hoje renovada, são sintomas dolorosos do mesmo dinamismo e flexibilidade. A enorme emigração lusa dos anos 50 e 60 bateu recordes mundiais, com valores só ultrapassáveis por casos de catástrofes naturais. Por outro lado, os episódios de imigração, quer no regresso dos "retornados" em 1975 quer desde a viragem do milénio também são fenómenos em escala incomparável, absorvidos na sociedade com custos elevados mas sem perturbações de maior. Até algumas das chamadas "chagas", como a precariedade do emprego e economia paralela, são evidentes sinais de flexibilidade.
Muitas outras provas poderiam ser aduzidas para substanciar a afirmação. Ela sente-se na recente e incrível transformação estrutural no produto, emprego e comércio externo. Em 35 anos absorvemos 40% da população activa, que estava na agricultura em 1950. Em 15 anos substituímos 20% das nossas exportações, que em 1990 eram têxteis. Hoje as mudanças continuam evidentes, com o crescimento dos serviços e o aparecimento de novos sectores. Se é assim, porque estamos em crise há tanto tempo?
Existe uma serpente neste paraíso, uma Dalila para este Sansão, uma kryptopnite deste Superman. O País que fundou o mais longo e vasto império colonial da História, que defrontou com sucesso a EFTA, a CEE e o mercado único, conhece bem o veneno que corroeu os sucessos iniciais nessas realizações. Não é difícil compreender porque os dois trunfos do nosso desenvolvimento, flexibilidade e improvisação, não têm hoje os resultados de outros tempos. Contra eles conspiram múltiplas forças paralisadoras, as mesmas que nos bloquearam no passado. Enorme camada de parasitas suga o progresso.
Os portugueses, que se excedem nos momentos de dificuldade, costumam cair numa modorra quando tudo corre bem. Após o obstáculo, onde revelámos o nosso melhor, deslizamos para a complacência e cumplicidade, pela instalação dos interesses, bloqueio das corporações, paralisação das burocracias. A economia portuguesa continua tão dinâmica e flexível como sempre. A globalização impõe hoje, como no passado, uma reestruturação, que se verifica. Mas muito lentamente. O motor está atrelado a um peso morto que tem de arrastar: regulamentos e portarias, burocratas e mandarins, impostos e multas, fiscais e inspectores, directivas e diuturnidades, direitos adquiridos e justas reivindicações.
Nos reinado de D. Fernando, D. João III e D. João V, nos consulados do Duque de Loulé, António José de Almeida e desde António Guterres, "um fraco rei faz fraca a forte gente" (Os Lusíadas III, 138). Porque a forte gente se deixou adormecer na apatia das repartições.