terça-feira, dezembro 12, 2006

Ainda a morte de D. João VI

O estimado e admirado JM deixou um comentário ao meu apontamento sobre a morte de D. João VI que se traduz em recordar a dúvida sobre a autoria: sempre os malhados podiam retorquir a qualquer suspeita contra eles lançada que os homicidas tinham sido os corcundas, e com efeito também esse rumor foi posto a correr na época.
Como a discussão é susceptível de interessar a mais gente, respondo aqui a essa observação (caso o JM pretenda usar da mesma faculdade tem esta casa ao seu dispor, e muito a valorizava).
Já que me espicaçou, agora atura-me.
Com todo o respeito pelo ilustre interpelante, nesta questão não parece haver fundamento para grandes dúvidas.
A haver crime, e era só o que se punha em dúvida, na situação então existente só o podiam ter cometido os que tinham o Rei inteiramente à sua mercê e nas suas mãos.
O rumor sobre os "corcundas" surgiu tardiamente, e claramente em contra-ofensiva.
Mas nunca foi levado a sério por ninguém: repare-se que os factos a que eu aludi só poderiam ser praticados por quem dominasse o "palácio".
E a intencionalidade desses factos resulta clara e iniludível: afastar a Regência de D. Carlota Joaquina, e afastar da sucessão o Infante D. Miguel.
Nem a Rainha, completamente incomunicável no Ramalhão, nem o Infante, então no exílio, podiam ter mantido o Paço de Bemposta em isolamento total e ir elaborando as informações diárias sobre o estado de saúde do Rei, e ainda para mais mandar fabricar um documento que impunha uma Regência contra as normas até aí conhecidas e que obviamente visava mantê-los para sempre afastados do poder. Nem certamente o publicariam na Gazeta oficial…
Os autores e executores do plano foram logo em cima do acontecimento apontados ao público: Lacerda, Barradas e Rendufe, que eram quem tinha as chaves e o poder para comandar estes acontecimentos. O Rei era um refém na Bemposta, ninguém tinha nem teve acesso a ele durante esse período.
Quanto ao documento em que tudo indica residir o essencial da questão, até correu a identidade do autor material da falsificação: terá sido um funcionário do Ministério da Justiça de nome José Balbino.
O que bate certo com o pormenor de ser Ministro da Justiça precisamente o referido Barradas.... e bate certo também com a conclusão do exame grafológico quando este diz que a rúbrica foi feita por mão habituada ao uso do aparo, e hábil no ofício, e não condiz nem com a escrita do Rei nem com a imperfeição manual de um moribundo.
Pode objectar-se, e pensei nisso, que quem praticou o envenenamento foram uns e quem a seguir executou o golpe foram os outros. Teria a sua lógica, já que a morte súbita do Rei teria a consequência de chamar à Regência a Rainha, numa reviravolta dramática na situação política: Carlota Joaquina passaria repentinamente de uma situação de prisão domiciliária para o poder, e o governo recente teria que fugir de rabo enrolado. E D. Miguel viria do estrangeiro para reunir Cortes e ser aclamado como Rei. Portanto, o poder que foi surpreendido pela morte do Rei teria sido obrigado a congelar a notícia por uns dias para remediar a situação, elaborar a Carta Régia que indigitava uma Regência anómala e abrir caminho para ir chamar D. Pedro.
Mas mesmo esta hipótese não se apresenta nada provável.
A este respeito, como facto interessante, refira-se que pela correspondência do Núncio de então verifica-se que o Rei andava a insistir na "reconciliação" com a Rainha; traduzindo a expressão pode calcular-se o que isto queria dizer em termos políticos para o governo em funções. Também várias fontes referem que o Rei, desgostado pelo desfecho das negociações que conduziram ao reconhecimento da Independência do Brasil, em que dizia ter sido levado a assinar como coisa consumada documentos que não correspondiam à sua vontade, manifestava cada vez com mais insistência a preocupação com o problema dinástico; e propunha-se organizar o regresso de D. Miguel do exílio. Atente-se em que depois de assinados os tratados com o Brasil a situação de D. Pedro aparentava estar esclarecida e consumada, era um Imperador de uma potência estrangeira e abdicava expressamente de quaisquer direitos em Portugal. O Infante D. Miguel era o único filho que restava, afigura-se inevitável que o Rei, como outro qualquer nessa situação, pensasse na sucessão.
Tudo visto, parece poder concluir-se que os governantes de então andavam justificadamente aflitos: se deixassem andar a carruagem teriam previsivelmente que suportar de novo a Rainha e o Infante, que tanto lhes tinha custado a anular.
Acrescento o pormenor curioso do relato do embaixador britânico sobre a sua visita de condolências à Rainha, uns dois meses depois, no Ramalhão, em que este menciona que a Rainha lhe afirmou ter informações de que o Rei tinha sido envenenado com "água tofana". Parece condizer com as descobertas científicas, porque "água tofana" é um composto de arsénico.
A Rainha estava prisioneira, mas ainda assim teria os seus informadores.
O povo dizia que tinha sido nas laranjas, mas esse pormenor nunca o saberemos; todavia, o que resultou do exame às reais vísceras é que foi na realidade arsénico.
Em resumo: neste caso, face ao que é certo e conhecido, não parece possível defender com um mínimo de seriedade a responsabilidade da Rainha e do Infante, que estavam em posição tal que nunca lhes seria possível executar este golpe, e foram notoriamente os alvos do mesmo.
Quanto ao episódio que conta, de D. Pedro, deixo só uma pergunta: se ele pensava que o pai tinha sido assassinado porque não pediu contas aos seus amigos que tinham assinado todos os comunicados e proclamações sobre a doença e a morte natural? Pelo contrário, todos passaram muito bem. Rendufe ainda passaria de Barão a Conde.
E essa intenção de se vingar de um irmão assassino é compatível com as atitudes de promover o casamento dele com sua filha, Rainha, e de o fazer regressar do exílio para essa função de príncipe consorte?
A historieta parece fantasiosa. Acrescento aliás que sobre essa questão não conheço qualquer pronunciamento de D. Pedro que contrariasse a versão oficial.
E de igual modo sempre foi a versão oficial a proclamada pelos responsáveis liberais. De tal maneira que mesmo muito mais tarde, já em 1870 ou 71, quando o jornal miguelista "A Nação" voltou à carga com as acusações que acima referi a única reacção pública foi uma declaração de Saldanha anunciando que estava disposto a juntar-se ao então Duque de Palmela caso este decidisse processar o jornal por caluniar o nome do pai. Para o velho Saldanha o confronto era entre a verdade oficial (morte por doença) e a calúnia miguelista (o envenenamento pelo poder palaciano). Nada mais se discutia (e por sinal que não houve processo nenhum).
Termino por aqui, para não cansar. Se for preciso há mais.

2 Comments:

At 9:57 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Basta! Basta! Rendo-me!
E a sério: muito obrigado por este verdadeiro ensaio sobre o evento. O texto que recomenda é impressionante e a lógica com que agora enfrenta e afronta as versões tradicionais difícil de não aceitar. Aventei o despique da acusação mútua, porque, como diz, ela foi real. Recordo-me de ter lido algures alusões directas ao sinistro Rendufe; mas o que colhe verdadeiramente em meu entender é o argumento do domínio "malhado" da máquina palaciana (indispensável ao crime e, sobretudo, à preservação do silêncio sobre a morte efectiva e manipulação das soluções de governação) que agora adquire foros de credível. Raúl Brandão, se não me falha a cabeça, tem nas "Memórias" alguns apontamentos interessantes sobre o isolamento da Raínha. Gostaria, todavia, de continuar a acreditar que D. Pedro foi alheio ao crime e fiel à imagem de bom filho que teve, bem possível numa Corte onde também pairava essa sinistra figura que foi Palmela. Só o generoso e algo "tontarrón" Saldanha poderia pôr as mãos no fogo por ele...
Obrigado pela lição.

 
At 10:59 da tarde, Blogger Manuel said...

Nada permite dizer que D. Pedro tivesse nessa altura o menor conhecimento ou interesse sobre o que se passava em Portugal.
Acredito que só a evolução da política brasileira, que lhe foi muito pouco feliz, fez com que ele voltasse a interessar-se por Portugal, cedendo aos rogos daqueles que precisavam dele por cá, porque sem ele os seus próprios projectos políticos apresentavam-se em risco de total naufrágio.
Quanto às personagens que por cá se movimentavam, obviamente que só Palmela foi falado.
"Tão pequeno de corpo como extraordinário em conseguir os seus caprichos..."
Ainda assim, é de manter reservas sobre participação activa em coisas destas: ele sempre se caracterizou pela prudência e na conjuntura ainda era de hesitar quanto ao que o futuro traria.
Nessa data ainda ele era Conde de Palmela, e o título devia-o ao favor político da Rainha D. Carlota Joaquina.
Quanto a João Carlos Saldanha, era um jovem amigo de infância dos dois reais rebentos; não andaria sequer em alinhamentos políticos que só os anos seguintes iriam trazer e radicalizar.

 

Enviar um comentário

<< Home