quarta-feira, outubro 18, 2006

Haverá Ministério Público?

O Ministério Público é uma instituição recente. Dantes havia Delegados e Procuradores, mas não havia Ministério Público. Os Delegados eram candidatos a Juiz que faziam aí a fase propedêutica, os Procuradores eram Juízes nomeados para tal em comissão de serviço (pelo poder executivo, naturalmente). Como órgão do Estado com existência própria, com um quadro seu, com magistrados, uma carreira, uma Lei orgânica e um Estatuto, trata-se de uma novidade nascida da Constituição de 76.
Por isso mesmo a fragilidade do edifício institucional: com umas alterações na Constituição, e vontade política nesse sentido, o Ministério Público pode acabar.
Projectos publicamente defendidos, como por exemplo a criação de um Conselho Superior de Justiça como órgão único a presidir ao Poder Judicial, conduzem necessariamente a esse resultado. Para não falar de outras propostas mais radicais, que vão no sentido da sua transformação numa espécie de rede de "advogados do Estado" directamente vinculados ao Governo, através do Ministro da Justiça.
Daí a pertinência da dúvida sobre se este escasso quarto de século de existência e funcionamento já permite falar de uma institucionalização, pretendendo dizer-se com esta palavra que o tornar-se instituição não é apenas uma consequência automática da consagração legislativa, antes implica a criação de uma consciência de si e de um conjunto de significações colectivamente partilhadas, que dêem vida ao corpo vazio do edifício normativo.
Vem esta conversa a propósito de dois acontecimentos que enchem os noticiários de hoje e prometem ocupar ainda muito espaço nos próximos dias.
No próximo sábado realiza-se para os lados da Caparica a homenagem aos Drs. Souto Moura e Agostinho Homem, a equipa cessante na PGR. Ao que parece, o ambiente gerado e o afluxo de inscrições excede tudo o que era esperado e tem sido normal em situações semelhantes. Pode já com segurança dizer-se que o acontecimento pouco tem em comum com rituais protocolares, habituais em momentos de despedida. A unanimidade de sentimentos, sobretudo de sentimentos, mais do que de entendimentos, à volta dos homenageados obriga a dar aos factos uma interpretação que ultrapassa em muito o âmbito das solidariedades pessoais. Parece realmente ser uma instituição que colectivamente se sente.
O outro acontecimento foi a reprovação da proposta do novo PGR, que indigitou Mário Gomes Dias para o cargo de Vice-PGR.
Como já aqui tinha referido, parecia-me desde o princípio que o PGR Pinto Monteiro enfrentava um sério problema: entrava sozinho numa casa que não é a sua, sem conhecer o sítio e encarado pelos habitantes deste como um intruso que foi para ali mandado com a missão específica de os meter numa ordem definida de fora.
O sentimento de incomodidade agravou-se com a indicação, que lhe cabia fazer, da pessoa que pretendia para Vice. Como sabem os mais versados nas questões práticas do funcionamento da PGR, o Vice tem um cargo decisivo e essencial: como tem sido habitual, é a ele que compete estar sempre presente, despachar todos os assuntos correntes, gerir efectivamente a máquina do MP no seu dia a dia, dar despacho e resposta a todos os problemas do quotidiano. Nessa medida, é muitas vezes mais relevante para a vida dos magistrados do que o próprio PGR.
Tendo em conta o que se expõe, percebe-se que a proposta de Pinto Monteiro foi desastrada. O Dr. Gomes Dias pertence na verdade aos quadros do MP, mas basta pensar que permanece desde há 23 anos como auditor do Ministério da Administração Interna para se entender como teria que ser visto por quem está como um estranho que efectivamente é. Mais grave do que isso, a sua nomeação teria que ser vista como um sinal inequívoco de governamentalização. Não sabemos se assim era voluntariamente, mas inevitavelmente era esse o significado da escolha - não sendo abusivo pensar na hipótese de a mesma resultar de algum compromisso prévio assumido pelo novo PGR.
O Conselho Superior do Ministério Público votou contra a nomeação. Vem a propósito esclarecer que a discordância entre o Conselho e o PGR não representa nada de invulgar ou extraordinário, tendo acontecido várias vezes, nomeadamente com Souto de Moura. Porém, neste caso tratou-se de reprovar a primeira proposta do novo PGR, recém empossado - e logo em matéria que é consensualmente tida como estando na esfera do titular, por exprimir necessariamente uma relação de confiança pessoal.
Neste circunstancialismo concreto, o que se passou parece mesmo uma moção de desconfiança. Se me fizessem isto a mim eu ia-me embora. Provavelmente o Dr. Pinto Monteiro não pode, e também não quer. Mas que é embaraçoso, isso não se pode negar. E parece-me ver também aqui aflorar uma consciência de si que faz pensar na real institucionalização do MP.