sexta-feira, abril 21, 2006

A parlamentarização da magistratura (4)

Como já tinha referido, aguardava-se para esta quinta-feira a reunião extraordinária do Conselho Superior da Magistratura convocada para se decidir da resposta a dar ao Governo acerca do pedido de autorização para nomear um juiz para um cargo político exterior à magistratura.
Recordo que o estatuto dos magistrados judiciais prevê que estas nomeações em comissão de serviço extra-judicial têm obrigatoriamente que ser precedidas de autorização do CSM, como órgão legalmente competente para a gestão das carreiras judiciais.
E anote-se, para compreender a relevância do assunto, que este poder do CSM não é bem visto pelos sucessivos executivos, sempre com tendência para encarar com maus olhos os poderes detidos por outros órgãos constitucionais (forças de bloqueio, na feliz terminologia cavaquista).
No momento presente a situação assumia visivelmente aspectos de um braço de ferro, entre os que queriam aproveitar para afirmar a autonomia do Conselho, a sua impermeabilidade a pressões externas, a incompatibilidade destas nomeações políticas com a independência própria da carreira judicial e a essência da separação de poderes, e aqueles para quem o essencial é fazer pública exibição da autoridade governativa (a que se juntavam os que acima de tudo consideram fundamental não causar embaraços à governação socrática).
Parece-me evidente que os responsáveis governamentais da área da Justiça procuraram deliberadamente um confronto: ao ter sido anunciada por todos os órgãos de comunicação a nomeação do juiz de Vila Franca para director-adjunto da PJ, ainda antes de o CSM receber qualquer pedido nesse sentido (contra todas as regras, até as de elementar boa educação), quis-se voluntariamente criar uma situação em que a deliberação do Conselho ficaria reduzida a uma formalidade irrelevante, um sancionamento a posteriori de algo já decidido, quando a lei prevê a autorização prévia como condição necessária – ou então atirar ao Conselho o ónus de dizer não, e ser então apontado como um feudo tenebroso das forças corporativas que conspiram contra o governo do engenheiro, uma fonte de problemas a exigir urgente reforma que lhe dê composição mais adequada.
Em qualquer dos casos, o governo e a sua estratégia de propaganda sairiam a ganhar.
Apesar desse facto, e mesmo também por causa dele, creio que se impunha que o CSM dissesse não. Por questões de princípio, que também existem e valem. E também porque quem não se sente não é filho de boa gente. E também porque quem quer ser respeitado tem que se dar ao respeito. E também porque é por demais sabido que os poderes que não se exercem acabam por se perder. Permitir que se transforme a prerrogativa legal do CSM de autorizar a saída ainda que temporária de um juiz em funções num mero pro-forma, uma formalidade desprovida de qualquer significado real, é abdicar desse poder e gerar uma prática que tenderá a estabelecer-se, como se tem visto e se verá de ora em diante.
Acrescento que existiam muitas razões para dizer não, até bem próximas: o rescaldo das experiências recentes com Adelino Salvado e Santos Cabral é demasiado negativo para que não imponha por si só a preocupação de afastar os juízes desses vespeiros – para salvaguarda da própria magistratura.
Existiam por tudo isto algumas expectativas quanto ao resultado da reunião. Iria o CSM ser capaz de dizer não, ou iria agachar-se perante o facto consumado?
Dizem os jornais que ganhou o Ministro da Justiça por 9 a 7. Ou seja, dos 17 possíveis votantes uma senhora faltou, nove votaram a favor da autorização e sete votaram contra. Foi à justa, mas passou a postura da submissão.
Obviamente que os argumentos trocados só poderão ser conhecidos com a leitura da acta, mas foi divulgado já o sentido de voto dos 16 presentes.
Alguns ingénuos ao ver esse resultado de 9 contra 7, e sabendo que são 7 os membros do CSM que são juízes de carreira e são 9 os membros de nomeação política, seriam tentados a pensar que houve uma vitória do bloco dos políticos contra o bloco dos juízes. Absolutamente errado. Se assim fosse ainda haveria algum motivo para esperanças quanto à saúde interna da magistratura. Mas não foi nada disso que se passou: aquilo que tenho vindo a chamar a parlamentarização da magistratura já se implantou muito mais fundo, e atingiu tanto os que são juízes como os que não o são.
Com efeito, os 7 que votaram contra foram os conselheiros indicados pelo PSD Calvão da Silva, Eduardo Vera Cruz e Moreira da Silva, mais o infeliz Presidente do STJ, Conselheiro Nunes da Cruz, e a que se juntaram outros três juízes. Os 9 que votaram a favor foram três membros indicados pelo PS, mais os restantes quatro juízes eleitos para o órgão (entre os quais o comissário político local do PS), e ainda – ó surpresa! - os dois novos membros nomeados por Cavaco - Laborinho Lúcio e Costa Andrade - que tinham tomado posse minutos antes e participaram desta forma no seu primeiro acto como membros do CSM.
Em suma: a vitória querida por Alberto Costa foi-lhe dada de bandeja pelos dois conselheiros de Cavaco. Tem algum significado? Deve ter. Pelo menos constata-se que existe um PSD instalado no partido, que se expressou através dos homens indicados por Marques Mendes, e outro PSD instalado em Belém, que se exprimiu através dos dois homens nomeados por Cavaco. E quem quiser que tire conclusões sobre a orientação presidencial em relação aos assuntos do governo.
Querem mais elucidativa demonstração do que chamei de “parlamentarização da magistratura” do que tudo o que ficou aqui à vista?