quinta-feira, abril 20, 2006

As faltas dos deputados

Começo por esclarecer que sou contrário a qualquer sistema de controlo das faltas dos deputados como têm sido sugeridos: a existência de relógios de ponto, de folhas de presença, de chamadas no princípio, no meio ou no fim, parecem-me práticas de todo incompatíveis com a natureza da função.
Um deputado é titular de um órgão de soberania: o modo como exerce o seu mandato tem que ser da responsabilidade do próprio, sujeito apenas ao consequente julgamento político.
A instituição de mecanismos burocráticos de controle das presenças confunde o mandato parlamentar com qualquer vínculo de nartureza administrativa, como se os deputados fossem funcionários.
Acrescento que esse equívoco tem contribuído muito para os males que sobressaíram à evidência nos últimos dias. Como não tem sido politicamente possível estabelecer remunerações condignas para os cargos políticos, os titulares não se têm importado com isso: dão a volta à situação criando modos alternativos de aumentar os rendimentos, como é o caso das caricatas senhas de presença, ou dos subsídios de deslocação, ou para reintegração, ou as reformas a curto prazo, e mais uns quanto truques de expressão pecuniária.
Pense-se no absurdo das senhas de presença: o titular de um cargo que teoricamente tem uma remuneração fixa recebe compensação diária por comparecer no local onde o seu cargo o obriga a estar.
Essa forma habilidosa de duplicar o rendimento mensal trouxe com ela as inevitáveis assinaturas de presença, com as conhecidas práticas de assinar e ir embora, ou ter sempre quem assine. Tal como os subsídios compensatórios por viver longe tiveram a consequência inevitável de muita gente, apesar de a todos ser conhecida moradia em Lisboa, passar a ter residência oficial declarada a mais de 100 km. da corte.
Qual a minha proposta? Obviamente a abolição de todos esses complexos esquemas de captação de vantagens patrimoniais, com a inerente fixação de um estatuto remuneratório adequado à dignidade da função (o que implicaria também a definição de um regime de incompatibilidades a sério, a que se tem fugido até ao presente).
Creio que as reformas que aponto bastariam para acabar com o espectáculo triste de ver membros de um órgão de soberania a ir a correr todos os dias ao Parlamento só para assinar e ir embora, ou ter um amigo para o fazer quando isso não lhe seja possível, a fim de não perder a retribuição diária e o valor da senha de presença.
Alguns cépticos estarão a dizer que por este modo se atingiria uma situação em que só estaria presente quem quisesse, sem que as ausências tivessem consequências. Não é verdade: recordo que as minhas sugestões se enquadram numa visão geral do que deve ser o parlamento e a carreira parlamentar, e nesta se inclui por exemplo a exclusividade da função, através de um rigoroso regime de incompatibilidades. O deputado teria realmente que passar a ser um deputado, e não apenas o detentor de uma sinecura que soma à sua actividade principal. E, aliás, em muitos outros órgãos, começando pelo Conselho de Ministros, inexiste folha de presenças ou registo de faltas, e todavia os seus membros estão normalmente presentes.
O problema das presenças coloca-se em relação às votações: as leis, as resoluções, as deliberações ou as simples moções da Assembleia da República têm realmente que exprimir a vontade desta, e para isso tem que respeitar-se o quorum adequado.
Mas aqui não existe dificuldade alguma: basta introduzir um sistema de voto electrónico presencial, que seja pessoal e intransmissível, para que em qualquer votação surja de imediato a lista nominal dos deputados votantes. Claro que nas circunstâncias actuais ninguém deseja esta solução (nem os deputados nem as direcções dos grupos parlamentares). Todavia, parece-me incontestável que assim se garantiria inevitavelmente a presença dos parlamentares, por essa forma responsabilizados individualmente pelo que votavam ou não votavam, em todos os momentos relevantes. Creio sinceramente que a ser assim ainda iríamos ver não apenas os deputados sempre presentes (porque nisso teriam interesse próprio e porque desse modo as direcções partidárias que os nomeiam não poderiam prescindir da sua presença) como provavelmente situações em que deputados a arder em febre seriam obrigados a saltar da cama e ser levados ao parlamento - porque o seu voto seria indispensável.

1 Comments:

At 8:28 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Manuel

Não concordo consigo na desenecessidade de registo de presenças. A dignidade da função é coisa que deixou de existir. Portanto, partir dela para concluir sobre a situação presente produz um resultado utópico.

Concordo consigo na votação electrónica. Desde que houvesse uma password... E, mesmo assim, ainda veríamos uns marotos a clicar pelo parceiro...

A qualidade dos deputados tem vindo a decrescer. Eu, que sou professor de Marketing, já quase só por ali vejo dois segmentos: o licenciado apparatchik sem préstimo profissional (quando tem profissão) e o advogado/economista/gestor membro da direcção partidária e que ali está para lobbying da organização/empresa em que realmente está, com excepção de um ou outro que ali consta por sacrifício para amsia altos voos políticos ou para compor salário de professor.

Com a sua proposta de exclsuvidade, os últimos teriam muito dificuldade em ficar no Parlamento. O que seria bom. Ficariam os aparatchiks mais notórios e entrariam uns novos. Mesmo assim, não chega. Sem uma cultura de responsabilidade não há política que resista.

 

Enviar um comentário

<< Home