segunda-feira, abril 24, 2006

As etapas do diálogo entre Roma e a Fraternidade São Pio X

Embora sem poder rivalizar com A Casa de Sarto, apresentamos também aos nossos leitores uma entrevista com Mons. Bernard Fellay, Superior Geral da Fraternidade Sacerdotal São Pio X, publicada no n° 132 da revista DICI, em que explica a sua visão das conversações com as autoridades romanas.

DICI: Monsenhor, desde o início das vossas conversações com Roma, há cinco anos, propusestes duas condições prévias antes de qualquer discussão doutrinal. Trata-se da liberdade de cada padre católico celebrar a Missa Trentina e da retirada do decreto de excomunhão lançada contra os bispos da Fraternidade. Porquê estas condições prévias? Não constituem uma manobra dilatória que permitiria ganhar tempo para tranquilizar os padres ou fiéis inquietos com uma eventual aproximação? Não vos arriscais, assim, a perder uma ocasião inesperada de reconciliação?
Mons. Fellay: Todas estas considerações políticas, direi mesmo, todos esses cálculos políticos são estranhos ao espírito das conversações que a Fraternidade tem com Roma desde que Mons. Lefebvre as iniciou. As condições prévias que propus têm como fim a criação de um novo clima na Igreja oficial. Seriam um primeiro passo para tornar novamente possível a vida católica tradicional. A situação actual impeliu os fiéis, perante os desastres pós conciliares, a afastar-se das suas paróquias para se juntarem à Fraternidade, apesar do opróbrio com que cercam os padres tradicionais. Nenhuma sanção romana, nenhuma prevenção episcopal dissuadem essas famílias de escolher a Tradição. É um facto. Assim, pedi ao Papa a realização de actos públicos a favor da Tradição, porque os nossos fiéis não poderão satisfazer-se com simples palavras de encorajamento. Tais actos são a liberdade da Missa Tradicional e a retirada do decreto de excomunhão. E se os rumores que hoje correm na imprensa sobre a retirada da excomunhão são reconhecidos como verdadeiros, poderá dizer-se que o Soberano Pontífice teve em conta uma das duas condições prévias.
DICI: Não é pedir a Roma que resolva a crise com Ecône unilateralmente, sem contrapartida do vosso lado?
Mons. Fellay: Não, porque a crise com Ecône não é a única. Não passa de reveladora de uma crise mais profunda na própria Roma, e a solução desta crise maior está em Roma. Não se trata, para nós, de uma negociação de tipo sindical, porque não temos interesses próprios nem vantagens pessoais a negociar. Desejamos que Roma reencontre a sua Tradição. Ecône não faz mais do que conservar, antes de tudo, o património da Igreja Universal. Pertence a Roma dar à Tradição o seu lugar, total e inteiro, a fim de que possa desempenhar o seu papel na solução da crise da Igreja.
DICI: Mas a excomunhão é uma situação pessoal que vos diz respeito, a vós e vossos confrades…
Mons. Fellay: Pedimos a retirada de um decreto de excomunhão ao qual nunca concedemos valor canónico, sem o qual, evidentemente, não teríamos exercido nenhum ministério: nem ordenação, nem confirmação… Mas estamos bem conscientes do alcance prático do decreto: a diabolização eficaz da Tradição, o impedimento de os padres tradicionais praticarem o bem nas paróquias. Se uma família nos dirige um apelo para um sacramento no rito tradicional, o bispo ou o cura não têm senão uma palavra: «Não pensem nisso, estão excomungados!» Eis como, concretamente, se neutraliza a Tradição. As duas condições prévias – a liberalização do uso do Missal de São Pio V e a retirada do decreto de excomunhão – visam, para além dos fiéis tradicionais, o bem da Igreja inteira. Trata-se de permitir à Tradição encontrar o direito de cidade na Igreja e de prestar as suas provas no terreno. É assim que podemos ajudar Roma a debelar a crise na Igreja. Estas duas condições prévias funcionam – segundo a expressão dos teólogos – como um removens prohibens, devem levantar os interditos que impedem a Tradição de agir praticamente, pastoralmente.
DICI: Podeis precisar o vosso pensamento?
Mons. Fellay: Deixando a Missa Tradicional de estar em liberdade vigiada e o ministério dos padres tradicionais de estar rodeado da suspeição de excomunhão, nenhum compromisso seria assumido, nem por Roma nem pela Fraternidade. Mas, no fim, Roma poderá julgar, com provas, a obra feita pelos padres tradicionais. E disse que a Fraternidade São Pio X estava disposta a acolher visitadores romanos que poderiam apreciar, no local, o seu trabalho apostólico.
DICI: Tudo isso é prático e pastoral; ora, a crise da Igreja é principalmente doutrinal. Onde estão as questões de fundo, da liberdade religiosa, sobre a qual Mons. Lefebvre emitiu Dubia, dúvidas comunicadas ao Cardeal Ratzinger? Que se passa com o ecumenismo, ao qual consagrastes um estudo, há dois anos entregue a todos os cardeais?
Mons. Fellay: Sobre as questões do ecumenismo, é muito significativo o mutismo dos cardeais aos quais foi entregue o estudo. O seu silêncio mostra bem a distância que nos separa no plano doutrinal. Fez bem em notar que os dois pontos prévios têm um alcance prático, e é por isso que constituem a primeira etapa necessária antes de se poderem abordar as questões doutrinais. Com efeito, as discussões de fundo, empreendidas fora ou antes da etapa pastoral, parecem, a priori, destinadas ao fracasso. Aqui, importa dar-se bem conta que Roma e Ecône – para abreviar – convergem num ponto, mas divergem noutro. As autoridades romanas estão hoje conscientes da situação dramática da Igreja – foi bem o futuro Bento XVI que disse que a Igreja é como «um barco que mete água por todos os lados»; – neste ponto estamos de acordo, mas onde não nos entendemos é sobre a causa da crise. Roma não aponta como principal responsável senão a sociedade secularizada, hedonista e consumista, que ignora ou combate a mensagem evangélica, enquanto que nós, nós afirmamos que o Concílio Vaticano II, abrindo-se ao espírito do mundo moderno, fez entrar no seu seio princípios como o da liberdade religiosa ou o ecumenismo, que são contrários à mensagem evangélica e responsáveis pela situação actual. Nós visamos outra coisa bem diferente de «uma falsa interpretação» superprogressista do concílio. Compreende-se bem que as autoridades romanas dificilmente encarem remontar ao Vaticano II como causa da crise, porque isso equivaleria a pôr em causa o concílio, ao qual permanecem fortemente ligadas. Nesta situação, é preciso reconhecer que nenhuma discussão doutrinal é possível, como declaram justamente Michael J. Matt e John Vennari numa recente declaração comum.
DICI: Assim, pode pensar-se que, no fundo, não encarais seriamente um diálogo com Roma?
Mons. Fellay: Direi que este diálogo deve ser doutrinal e prático, com factos em apoio das argumentações teológicas. Partindo do ponto de convergência de Roma e nosso – a verificação de uma crise desastrosa – devemos tentar resolver a divergência, tentando fazer Roma admitir a verdadeira causa da crise. A discussão doutrinal tem como fim obter o reconhecimento dessa causa por Roma, mas com os princípios modernos de que estão imbuídas as autoridades romanas desde o Vaticano II, tal discussão não pode ter lugar sem o concurso de uma lição dada pelos próprios factos, ou ainda, mais precisamente: não se pode realizar sem a avaliação da obra concreta que a Tradição pode cumprir com vista a uma solução da crise de vocações, da prática religiosa… Do nosso ponto de vista, são os efeitos do apostolado tradicional que farão ver a contrario onde está a causa da crise. Eis a razão por que os pontos prévios práticos me parecem indispensáveis ao bom desenrolamento das discussões doutrinais. A liberdade de acção concedida à Tradição deve permitir-lhe prestar as suas provas e desempatar, com factos, as duas partes, que não concordam doutrinalmente sobre a causa da crise. Esta lição dos factos que pedimos a Roma que aceite, repousa, antes de tudo, na nossa Fé na Missa Tradicional. Esta Missa reclama, por si mesma, a integridade da doutrina e dos sacramentos, garantia de fecundidade espiritual junto das almas.
DICI: A vossa linha de conduta é partilhada pelo conjunto dos padres e dos fiéis ligados à Tradição?
Mons. Fellay: Já Mons. Lefebvre dizia que as autoridades romanas seriam mais sensíveis aos números e aos factos apresentados pela Fraternidade São Pio X do que aos argumentos teológicos. Muito evidentemente, o nosso fundador não pretendia iludir uma necessária discussão doutrinal, por isso queremos, nesta segunda etapa, apresentar em Roma os argumentos da teologia tradicional, confortados com os factos do apostolado tradicional, antes de abordar a terceira etapa, a do estatuto canónico da Fraternidade. Importa ver bem como se articulam as etapas deste diálogo, para compreender que não queremos descurar nem o aspecto especulativo ou doutrinal, nem o aspecto prático ou pastoral, tal como não queremos ignorar a prudência realista e o espírito sobrenatural. Os que não querem reter senão o aspecto prático ou canónico, verão na nossa exigência doutrinal uma perda de tempo, e as etapas serão entendidas como manobras dilatórias. Por outro lado, os que não querem encarar senão o aspecto especulativo, entenderão que as condições prévias pastorais são a colocação entre parêntesis dos problemas de fundo, e dirão que o diálogo é o início de uma adesão ao modernismo. Uns e outros têm razão no que afirmam, mas deixam de tê-la no que negam: é preciso afirmar a necessária lição dos factos e a indispensável discussão doutrinal.
DICI: Então, o acordo canónico é para as calendas gregas?
Mons. Fellay: Fala-se de administração apostólica, de prelatura pessoal, de ordinariato… parece prematuro. Ao querer um acordo canónico agora e a qualquer preço, ficaríamos expostos a ver ressurgir imediatamente todos os problemas doutrinais que nos opõem a Roma, e esse acordo estaria logo caduco. A regularização do nosso estatuto canónico deverá acontecer em último lugar, como para selar um acordo já realizado, pelo menos no essencial, no âmbito dos princípios, graças aos factos verificados por Roma. Aliás, imaginemos por um instante que nós aceitamos uma estrutura canónica para só depois encarar – no interior, no «perímetro visível» das dioceses – as questões doutrinais. Não poderíamos cumprir o nosso ministério com toda a eficácia pastoral. Não estariam reunidas as condições práticas que permitissem uma lição dos factos plena e completa. Como já é o caso das comunidades Ecclesia Dei, o nosso apostolado tradicional estaria em liberdade vigiada, só autorizado a manifestar-se com parcimónia aqui e ali, como em conta-gotas. O essencial é saber se a situação trágica da Igreja, hoje – a crise impressionante de vocações, a queda vertiginosa da prática religiosa… – lhe permitem contentar-se com remédios administrados a conta-gotas.

1 Comments:

At 1:53 da manhã, Blogger Miles said...

Não só não rivaliza nada o Manuel com a "Casa de Sarto", como a mesma aplaude vivamente a publicação de material deste tipo. Brevemente, iremos actualizar o blogue, e também no que concerne a esta matéria.

 

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