quinta-feira, fevereiro 16, 2006

O mellhor Rogeiro

Copiado da "Sábado" de hoje, sem autorização nem conhecimento de ninguém, um excelente texto de Nuno Rogeiro, ao seu melhor nível, evocando Agostinho da Silva.

Com nome próprio de doutor da Igreja, e apelido de português banal (da rua ou da presidência), George Agostinho Baptista da Silva foi um dos nossos mais entranhados, telúricos e "nacionais" intelectuais.
Como Santo Agostinho, entendeu e escreveu sobre a complexa coexistência de mundos essencialmente estranhos. Como Santo Agostinho, teve a coragem de mudar várias vezes de vida, sem nunca renunciar a ela. Como Agostinho, bispo de Hipona, deixou-nos "confissões" (no sentido exacto de profissões de fé) radicais sobre o "admirável povo português", essa entidade primeira e última onde acabava por depositar (sem substituto nem intermediário) todas as esperanças.
"Santo Agostinho" da Silva viveu vários regimes e governos, e nas suas páginas recorta-se, muitas vezes, a reflexão sobre o Mal à solta na Cidade, e a apropriação dos Estados por grupos de corsários.
Embora a teoria política em Agostinho da Silva esteja ainda por escrever, ao menos de forma sistemática (e não meramente "impressionista"), o hoje centenário saiu de Portugal no interregno que Pessoa olhava favoravelmente, três anos antes da institucionalização do Estado Novo, e percorreu a sua via de peregrinação (onde certamente encontrou os espíritos de Fernão Mendes Pinto, de Vieira, de Afonso de Albuquerque e de Ferreira de Castro) e exílio, sobretudo a partir da prisão em 1944. Previamente, refugiara-se na própria nação, para escapar à guerra fratricida em Espanha, mas o regime de "sal e azar" perturbava o seu reduto libertário.
Acabou por voltar ao rectângulo só no segundo ano de "primavera marcelista", não sem antes ter sido assessor internacional de Jânio Quadros, e ficar assim embrenhado nos acidentes das revoluções brasileiras.
Desbravador do sertão (o literal, e o das ideias), um jornal chamou-lhe, apropriadamente, "Agostinho da Selva". Português bandeirante, não metafísico mas mais que físico, foi, com Gilberto Freyre, o grande pensador da lusofonia, como espaço para além da política, mas muito aquém das ideias vagas. É que o cimento da língua leva a outras aglutinações: a própria noção de povo expande-se, e vai do Minho ao Amazonas.
Seareiro e Sorbonnista, poliglota e semeador de universidades, patriota enraizado, conhecedor do topo nacional como ninguém, foi também português renascentista, à procura de outros mares, com asas desmesuradas, solenes mas humanas.
Da análise erudita da literatura, chegou à nossa história, e vice-versa. A filosofia e a psicologia levaram-no à reflexão sobre a Coisa pública.
Filósofo à moda antiga, autor de apólogos dialogais, cartas de reflexão, alegorias da caverna, procurou ainda, como ninguém, o mistério das palavras: não só a sua origem, mas o seu destino.
Por fim, não foram nem os títulos académicos, nem as honras, nem os postos que o tomaram maior, ou mais homem. Quando se fala hoje na glória de Bill Gates, que deixou a universidade para um projecto especial de vida, lembramos Agostinho de Silva: as novas tecnologias só sucedem como "alavanca nacional", quando ao leme estiver alguém como ele.
Sem o espírito, não há máquina .

1 Comments:

At 11:54 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Agostinho da Silva foi um dos dois (ou talvez três) génios da cultura portuguesa do sec.XX. É impossível sentir o devir português (de Portugal e do V Império)sem o pensamento de Agostinho da Silva. Não nos aponta um caminho, mas diz-nos o que está além. Com Fernando Pessoa e António Vieira constitui o essencial da alma portuguesa. Foi um génio e talvez um Santo.

esteves-sem-metafísica

 

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