terça-feira, fevereiro 28, 2006

Sobre a blogosfera

Embora infinitamente menos atento e arguto que Pacheco Pereira, também dedico algum do meu tempo a observar a blogosfera portuguesa e a tentar entendê-la.
Desde há três anos para cá creio que tenho acompanhado o fenómeno, obviamente sem ter pretensões a especialista, ou sequer a conhecedor profundo. Conclusões, por isso, são apenas as resultantes desse olhar próprio, condicionadas pelo empirismo e pelas deformações do ponto de visão.
Dito isto, confesso que alguns dados que tenho retirado da minha experiência deixam-me intrigado. Leia-se: sem explicações satisfatórias. Algo importante me está a escapar.
Como sabem os leitores mais antigos, eu sempre acreditei, e disse-o repetidamente, nas potencialidades do meio. Sem qualquer originalidade, sublinhei (também) como me parecia crucial o papel da blogosfera na informação e na formação de opinião num futuro próximo. Como se afigurava previsível o seu crescimento em termos quantitativos e qualitativos, em influência e penetração.
Na verdade, assistiu-se durante este período a uma explosão do número de blogues, talvez como um fenómeno de moda (que a certa altura terá sido e entretanto passou).
O que me parece certo neste momento é que o número de leitores já desde há bastante tempo não parece ter obedecido à trajectória ascensional que estava prevista.
E essa constatação é intrigante, sobretudo se atendermos e acreditarmos nas estatísticas que falam de um grande aumento da difusão da internet em Portugal no mesmo período.
Poderão retorquir-me que isso são queixas minhas, uma vez que este blogue não interessa manifestamente a ninguém. Aceito a tese, e confesso que o número de visitantes deste blogue parece ter estabilizado nos últimos meses (aliás com uma notável regularidade) num número diário que é pouco superior a metade do que já foi.
Porém, não devemos distrair-nos com casos particulares.
Examinando o Blogómetro, que é o que estava a fazer, temos que retirar algumas ilacções que relativizam notoriamente a importância actual do meio.
Saliento que o Blogómetro é um instrumento utilíssimo e inestimável, que devemos agradecer, ainda que por opção própria não se queira alinhar nesses campeonatos (eu sou de opinião oposta, penso que é bom que todos se inscrevam).
Ora o que se constata é que na blogosfera portuguesa basta alcançar uma média de visitantes por dia que pouco excede 250 para entrar directamente no top dos "cem mais".
Duas centenas e meia, mesmo num país com as nossas dimensões e hábitos, é francamente pouco, muito pouco. É preciso ter a humildade de o reconhecer.
Verifica-se aliás que na lista referida surgem incluídos, e destacados, bastantes sítios que não são propriamente blogues, seja qual for o critério em que se assente (refiro-me por exemplo aos mostruários das "gajas nuas").
E aparecem alguns cuja notoriedade não nasce da blogosfera: o número elevado de visitantes dos blogues de Pacheco Pereira ou Vasco Pulido Valente não são uma demonstração da força da blogosfera, são a transposição para a blogosfera de uma popularidade já existente.
Acrescento ainda uma observação final, mas que me parece relevante. Como já salientou Pacheco Pereira, e bem, uma das leis da blogosfera é o tribalismo. Eu desde o início que reconheço o facto, e até gostaria que a realidade fosse diferente, mas é realmente assim: o internauta cria uma rede própria de referências, e a partir da estabilização desta a sua navegação raramente se afasta dessas coordenadas.
Quer dizer, formam-se círculos relativamente fechados, grupos que se visitam reciprocamente e falam entre si, até por links, citações, recomendações. Dentro desses círculos, os blogues que integram esse anel têm mais ou menos os mesmos visitantes. São as mesmas pessoas, que fazem a ronda pelos blogues da sua área pré-definida.
Nestes termos, compreende-se o que quero dizer. É preciso interiorizar a constatação: somos realmente poucos, a falar uns com os outros.
Por vezes estamos aqui a escarnecer do país e não nos lembramos que o país nem sabe da nossa existência.

segunda-feira, fevereiro 27, 2006

O perigo amarelo

Chinesices

Quando cada vez mais se impõe o imperativo de pensar na China, como uma questão decisiva para o futuro, destaque para dois novos artigos no CIARI:
Portugal e a China no contexto económico, de Mário de Jesus.
O acordo têxtil sino-americano, de Paulo Tavares Silva.
Para que se saiba.

Jantar da Primavera


Atenção: os antigos alunos do Liceu Nacional de Évora têm novo encontro marcado para o próximo dia 31 de Março, em Lisboa.
Solicita-se a confirmação das presenças o mais rapidamente possível: agradecem os organizadores do Jantar da Primavera.

Revista Atlântico


Mais um número da Atlântico: vejam a revista e o blogue.

domingo, fevereiro 26, 2006

O bloguista enfrenta o seu destino


A blogação é um vício devorador.

sábado, fevereiro 25, 2006

VI Curso de Defesa Para Jovens

Se tens entre 21 e 30 anos, não hesites: aproveita o VI Curso de Defesa Para Jovens, promovido pelo Instituto de Defesa Nacional, e que irá decorrer no Funchal entre 3 e 8 de Abril próximos.
As inscrições têm que ser feitas até 1 de Março, e só há 30 vagas (12 para jovens residentes na Madeira e as restantes 18 para qualquer outro jovem português. É para "potenciais dirigentes/ quadros superiores das estruturas do Estado e da sociedade civil".

O terrorismo de ao pé da porta


A Espanha mobilizou-se para dizer não ao terrorismo, esse que tantas simpatias e cumplicidades admirativas colhe entre as classes dirigentes, em Espanha e em Portugal. Madrid acordou inteira e firme. Rojo y gualda. Pela Associação das Vítimas do Terrorismo, contra a recuperação etarra pelo executivo zapatero.

A Torre de Ramires

O mais constante e persistente dos comentadores do "Sexo dos Anjos" inaugurou finalmente o seu blogue pessoal: excelente oportunidade para lhe devolver tudo o que tem dito e feito por este blogue.
Que a "Torre de Ramires" seja e tenha tudo o que tem desejado para esta sua casa.
Aqui estaremos para tudo o que precisar. Um bravo ao fidalgo da Torre!

Histórias do fantástico (mas é proibido duvidar!)

Após mais de 30 anos de mentiras, o "deportado" espanhol mais conhecido, Enric Marco, presidente da associação "Amical de Mauthausen", reconheceu que nunca esteve em nenhum campo de concentração e que inventou toda a sua biografia.
Enric Marco, agora com 84 anos, confessou que tinha falsificado em 1978 a sua biografia, como pretenso preso do nazismo, mas diz que o fez "porque así la gente me escuchaba más".
Ficcionou assim um passado dramático como vítima do nazismo no campo de concentração de Flossenburg, e passou três décadas a contar a história em milhares de conferências, artigos e entrevistas, que espalhou por todo o planeta.
O escândalo rebentou quando se encontrava na Áustria para participar em mais um fim de semana dedicado a cultivar a memória desses horrores.
Acrescente-se que o deportado profissional recebeu por causa da sua história todas as honrarias possíveis, até a condecoração maior da sua Catalunha, a Cruz de S. Jordi.
Na realidade a verdade é mais prosaica e terra a terra: Enric Marco viajou para a Alemanha em finais de 1941 integrado num grupo de trabalhadores espanhóis e regressou a Espanha em 1943. Nunca viu qualquer campo de concentração.
A sua confissão surgiu por ter sido encostado à parede por um investigador espanhol, que por acaso deparou com a falsidade.
Terminou assim a carreira do Presidente da mais importante associação espanhola de vítimas do "holocausto", e o mais célebre e celebrado dos seus membros.
O protagonista do filme declarou à EFE que "não menti por maldade" e explicou que "a mentira surgiu em 1978", e que a manteve porque "parecia que me prestavam mais atenção e podia difundir melhor o sofrimento das muitas pessoas que passaram pelos campos de concentração".
Compreende-se: a causa era boa, e a intenção melhor ainda. Está perdoado. Venha de lá outro Elie Wiesel...

Deriva aristocrática


Um lançamento póstumo da Librairie Nationale.

Respeito e tolerância


Um recente cartoon do brasileiro Carlos Latuff (lembrei-me de o pôr aqui enquanto me divertia com a notícia da suspensão por quatro semanas imposta ao Mayor londrino por ter dirigido a um jornalista que o importunava as palavras "Were you a German war criminal? Actually you are just like a concentration camp guard". O jornalista usa o bem achado nome de Finegold - não pensem que estou a inventar, que o respeitinho é muito bonito).

Julgar políticos

O jornalista Eduardo Dâmaso, um dos profissionais portugueses mais conhecedores da vida judiciária (porque teria ele saído do Público?) publica hoje no Diário de Notícias um oportuno artigo sobre uma (apenas uma, entre muitas) das ideias que, no linguajar dos comissionistas, está "em cima da mesa" da comissão ministerial para as reformas na área da Justiça. Merece destaque.

O ministro da Justiça propôs à Unidade de Missão para a Reforma Penal que considerasse a possibilidade de criação de um foro especial para os crimes praticados por titulares de órgãos de soberania. Descodificando: os deputados e ministros passariam a ser julgados pelos tribunais da Relação, o que teria também como consequência que actos de investigação como buscas e escutas telefónicas deixassem de ser autorizados por um juiz de instrução e passassem para aqueles tribunais superiores.
Como disse anteontem à noite o jurista Rui Pereira, coordenador daquela Unidade de Missão, durante uma tertúlia organizada pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, não está provado que os juízes daqueles tribunais superiores sejam especialmente benevolentes com os políticos. Pois não, mas a questão não é essa. Quando a investigação a um deputado, ainda que com honrosas excepções, já é obstaculizada pela manipulação do regime de imunidades, quando no País reina a ideia de que os poderosos (leia-se políticos) escapam sempre à acção da justiça, quando é cada vez mais consensual de que não pode haver tantos magistrados em comissões de serviço de nomeação política, quando são cada vez mais conhecidos casos de promiscuidade entre magistrados de tribunais superiores e dirigentes políticos e do futebol, não parece grande ideia fazer tal alteração à lei penal.
Não vale a pena ignorar a realidade. A ideia dominante em Portugal, mas também noutros países, é a de que os políticos dificilmente resistem à tentação de criar regras que lhes sejam mais favoráveis na relação com o poder judicial. Veja-se o caso de Jacques Chirac, que blindou a sua própria imunidade para evitar ser julgado. Ou o do inefável Berlusconi.
Adivinha-se a tentação de reagir se tivermos presentes alguns casos concretos. Mas esses episódios, como os que estiveram relacionados com o processo da Casa Pia, não são a regra. Por isso, a criação de um tal regime especial não virá certamente melhorar a imagem da classe política aos olhos dos portugueses nem é saudável no quadro da necessária separação de poderes. Sem cair em demagogias rasteiras, a exigência hoje colocada nos padrões de independência e transparência de uma democracia pede precisamente o contrário: que a equidade entre cidadãos e políticos perante a justiça seja cada vez mais uma realidade e não uma mera proclamação discursiva.

sexta-feira, fevereiro 24, 2006

Je maintiendrai!

Não poderemos ser portugueses sem Portugal?

Vencedores e vencidos

Trago comigo uma longa história de derrotas. Nunca essa perspectiva me perturbou, nem me pesa nas decisões de hoje ou de amanhã. Sou um vencido - com muita honra e orgulho (às vezes, confesso, a cair na vaidade). Diferentemente, encontro muitas vezes vencedores que vivem com medo dos vencidos. Parecem-me sempre desconfortáveis e inquietos.
Não é estranho: eles sabem como venceram.

Os meus bilhetes

Caro Rui:
A “direita indígena” não se encontra em nenhuma "situação larvar”. Fosse assim e todas as esperanças seriam possíveis: até uma linda borboleta podia sair da metamorfose.
Não é o caso: não há larva, nem casulo, nem a bicha me parece estar em desenvolvimento.
Também não será certo dizer que o estado é comatoso, e muito menos crer que o animal está morto.
O que se passa então? Eu acredito que é antes um problema de arrumação. Relaciona-se com móveis, e está aflorado no teu artigo, onde se fala de “engavetamento”.
Não penso no entanto que se trate apenas de uma questão de gavetas. Parece-me mais apropriado falar em armários.
Quero eu dizer que as direitas, sujeitas durante muitos anos à pressão da ditadura intelectual das esquerdas, e posteriormente à intimidação terrorista do pós-revolução, criaram o hábito de meter no armário o que eram, ou aquilo que se acreditava que eram.
E com o tempo o hábito entranhou-se. Até porque muitos acabaram por fazer vida disso.
Agora, quando eu ingenuamente pensava que toda ela estivesse saturada do armário, sem poder mais com a claustrofobia, verifica-se ao contrário que a criatura se apegou a esse modo de vida, e não quer outra coisa.
Caia-se na asneira de a chamar para a luz do sol ou puxar para o ar livre, e ei-la que se revolta e desata a gritar pela cabeça do desavergonhado desestabilizador, lançada logo numa impiedosa dança do escalpe.
O que pede é que a deixem estar; entre as ideias e a vida, o que interessa é a vida.
Na verdade nem sequer subsistem razões para o alarme: na maior parte dos casos o tempo decorrido parece ter desfeito o que havia. Abrem-se os armários e já não há lá nada.
Mesmo assim, o reflexo é de pânico: que ninguém se atreva a abrir os armários!
Vejam-se as reacções destrambelhadas ao “Sexo dos Anjos”, vindas de pessoas que eu até pensava estar a lisonjear, e logo se entende a força que tem a inércia do “complexo do armário”.
Desta forma, entre o que se arrumou nas gavetas e o que se escondeu nos armários, pouca coisa ficou de fora para mostrar uma presença “de direita”.
O que, na verdade, também não parece incomodar muita gente.
Dito isto, que talvez pareça não se relacionar imediatamente com “o problema da oposição e o estado de graça do governo”, pode facilmente chegar-se também a estes: tudo está na indistinção entre uma e outro, na comunidade de vida que se gerou e se tornou no único modo de vida conhecido pelos protagonistas da nossa cena política.
A “direita indígena”? Está no governo, ou governa-se, ou quer governar-se.
Atenciosamente, do compadre amigo

Manuel Azinhal

C'est à vous de choisir!

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Olivença em Alenquer

No âmbito das iniciativas culturais do JORNAL D’ALENQUER, terá lugar no próximo dia 1 de Março, às 21 horas, no Clube Taurino Alenquerense, Av. Jaime Ferreira, Alenquer, uma conferência sobre a Questão de Olivença, com a participação de dirigentes do Grupo dos Amigos de Olivença.
Convidam-se todos os que se interessam pela Questão de Olivença, da região de Alenquer, a participar no encontro.

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Aforismo nocturno

Aprendi com a vida que nunca devemos encarar com pessimismo excessivo o momento que passa. As coisas podem sempre vir a ser piores do que são. E geralmente é isso mesmo que acontece.

Tabus, por Chard

Pujança islâmica, ou abandono católico?


O que fizeram da nossa Igreja?

A porta-voz americana para o Médio Oriente

Dia Europeu da Vítima

Assinala-se esta data bizarra, o Dia Europeu da Vítima.
Para além da efemeridade do Dia e das iniciativas de cartaz que provavelmente o vão marcar, ou banalizar entre tantos, convém sublinhar que as vítimas de crimes existem, e são efectivamente vitimizadas muitas e muitas vezes por um sistema que não está pensado para elas.
Apetecia-me entrar no assunto a que o Venerando Chefe de Estado chamava o "excesso de garantismo" que viciava o nosso processo penal (isto antes de serem arguidos alguns indivíduos das suas relações pessoais e políticas; depois inverteu o discurso). Porém, a verdade é que esse é apenas um dos aspectos em que as vítimas são ignoradas, ou tratadas como mera abstracção.
Quando todos os sistemas destinados a assegurar a segurança da comunidade e a administração da justiça não funcionam, às vítimas resta geralmente o silêncio.
Acima desses problemas, pairam as castas que pela sua posição privilegiada não os sentem directamente. Infelizmente, esses, os legisladores, os ricos, os políticos, os opinion makers, toda a legião de teóricos bem instalados na vida, dominam os instrumentos de que depende enfrentar ou manter indefinidamente a situação. E, como dizia o outro, a História fala dos quarenta que gritam e não dos quarenta mil que calam.
Destinava-se este escrito a declarar a minha admiração e apoio aos objectivos da APAV - Associação Portuguesa de Apoio à Vítima. Aqui fica.

"Tem Portugal uma Política Cultural para a Ásia?"

Já foi noticiado pelos confrades Combustões e Portas do Cerco, pelo menos, mas não posso deixar de associar-me ao destaque.
Na próxima quinta-feira, dia 23 de Fevereiro, pelas 13 horas, na Sala D. Henrique, o Navegador (Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa) o Doutor António Vasconcellos de Saldanha profere uma conferência subordinada ao tema "Tem Portugal uma Política Cultural para a Ásia?".
Dada a essencialidade do tema para a projecção de Portugal no mundo (e embora como é notório eu esteja concentrado habitualmente na afirmação de Portugal em Portugal), convido os leitores a comparecerem no evento.

Energia Nuclear - o debate necessário

Atenção ao ciclo de conferências promovido pela Ordem dos Engenheiros: a questão energética tenderá a ser cada vez mais uma questão crucial para o futuro, nosso e o dos outros.
Não se lhe pode fugir.

terça-feira, fevereiro 21, 2006

Telegrama sobre nações e nacionalismo

A nação é, tão só, a comunidade política mais perfeita, ou menos imperfeita, que se conhece. Creio que foi o velho Maurras que se exprimiu mais ou menos assim. Compreende-se por isso a relação dela com o universal: é o seu espelho mais chegado. É o nosso universal. Nada a substituiu ainda, e não sei de algo que se perfile para a substituir. A verdade, neste tempo que é o nosso, é que nunca a nação foi tão desvalorizada entre a intelectualidade e a opinião publicada: mas simultaneamente todos os que não têm batem-se fortemente para a ter. A luta contra as velhas nações é sempre acompanhada pela afirmação, mesmo violenta, de ficções que vão desde a Nação-Europa às micro-nações desagregadoras, umas inventadas de fresco e outras recuperadas das profundezas da história.
E se isso acontece no nosso mundo, eurocêntrico, como não constatar que as mais vastas porções da humanidade, em África, na Ásia, ou por todo o mosaico islâmico, parecem atingir agora a "era das nações", elas cujos povos nunca tinham conhecido essa forma? (Cabe aqui observar que as nações pertencem realmente ao domínio da construções humanas, das realizações do homem na história, não constituindo factos da natureza, como parecem pensar alguns tolos).
Tudo ponderado, este quadro significará a obsolescência ou a vitalidade da Ideia Nacional?
Fica à consideração dos Ilustres Engenheiro e Jansenista.

Parada de Gonta

Se poucos conseguem ser profetas na sua terra, alguns vão sendo reconhecidos como poetas da sua: é o caso de Rodrigo Emílio, afectuosamente evocado em Parada de Gonta.
Um bravo ao blogue, enquanto esperamos pelas prometidas novidades editoriais saídas da surprendente arca do escritor.

Da rua ao cinema

O cinema tem constituído quase desde a sua origem uma arma, e uma arma poderosissima.
Uma verdadeira arma nuclear.
Acontece que desde há muito tempo essa arma tem sido praticamente um monopólio, ou se quiserem um oligopólio.
Em todo o caso, um privilégio "ocidental", no sentido que a esta designação associei uns parágrafos atrás.
Agora reparem nestas notícias: no festival de Berlim o prémio maior foi atribuído a um filme da realizadora Jasmila Zbanic, centrado no drama dos estupros em massa de que foram vítimas as mulheres bósnias durante o cerco à cidade de Sarajevo.
O filme Grbavica é um filme bósnio, com um olhar bósnio sobre a história. Um olhar "dos outros", se preferirem.
Destacado também outro filme: The Road to Guantanamo. Da responsabilidade essencialmente de cidadãos britânicos (paquistaneses e indianos), traz-nos a visão dos muçulmanos da ilha sobre o estado das coisas.
Ao mesmo tempo, faz furor na Turquia e por onde tem sido exibido (por exemplo na Alemanha) o filme "Valley of the Wolves-Irak", de Serdar Akar, a maior produção turca de sempre, que glorifica o heroísmo das forças especiais turcas no Iraque e vilipendia os ogres americanos. Outro olhar "dos outros" sobre a história.
Finalmente, está em destaque, até com nomeação para os óscares, um filme palestiniano: "Paradise Now", de Hany Abu-Assad, sobre dois bombistas-suicidas. Também um olhar "dos outros" sobre a história.
Em inúmeros meios ocidentais nota-se o desconforto; aqui e além afloram apelos e tentativas para impedir a distribuição dos filmes, para evitar que eles cheguem ao grande público; entre outros o embaraço é mais sério, porque entendem e sentem que o "Ocidente" perde sempre, proibindo ou promovendo.
Estão a ver porque dizia eu que o pior pesadelo para o tal "Ocidente" é precisamente a "ocidentalização" dos tais "outros"?

Movimento 560

Em Portugal até mesmo os nacionalistas são quase sempre muito pouco nacionais; daí que o êxito de uma iniciativa como o movimento 560 se afigure uma elevada improbabilidade.
Ainda assim, e até por isso, temos como altamente corajosa e muito válida a empresa referida.
Aconselhamos e pedimos a divulgação, colaboração e apoio ao Movimento 560 e nomeadamente ao respectivo Forum.

Alentejo no desenho e na memória de Júlio Resende


Dia 24 de Fevereiro, sexta-feira, será inaugurada na Fundação Alentejo Terra Mãe (Rua dos Penedos, 13-B, em Évora) uma exposição de 60 obras de Júlio Resende denominada “O Alentejo na Memória e na Obra de Júlio Resende”.
A exposição poderá ser visitada a partir de então, e até 30 de Março, no Salão de Exposições da Fundação, todos os dias das 10 às 12.30 horas e das 14.30 às 18 horas.

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

"Vêm aí os "árabes"?"

Os povos muçulmanos têm bem presente o facto de nos últimos séculos todos os seus confrontos com as potências ocidentais terem sido perdidos, não por causa da superioridade das ideias ou dos modos de vida ocidentais mas, cruamente, pelo seu superior poder de fogo.
Existe por isso a alimentar o incêndio que lavra nas ruas e entre as massas do mundo islâmico um fundo ressentimento, de mistura com sentimentos contraditórios de admiração, de inveja, e de humilhação.
Os povos islâmicos sabem, e os seus governos também, que para falarem de igual para igual com as potências ocidentais terão que ter as suas economias, a sua tecnologia, os seus exércitos, as suas armas.
Estão decididos a alcançá-las.
Contraditoriamente, à medida que progredirem nesses objectivos as suas sociedades serão cada vez menos “islâmicas”, no sentido religioso, e cada vez mais ocidentalizadas.
Todavia, isso não significará mais pró-ocidentais: ao contrário, é bem possível que no caso dos grandes estados de população muçulmana (Paquistão, Irão, Indonésia, etc.) lograrem essa “ocidentalização”, colocando-se no mesmo patamar dos modelos que cobiçam, os seus sentimentos sejam sempre mais anti-ocidentais.
Faço estas considerações para tornar claro o que pretendi dizer ao enfatizar que a questão é política, e não religiosa. Estamos perante conflitos políticos, no sentido rigoroso e científico do termo.
São-no cada vez mais, e creio que essa característica tenderá a acentuar-se dia a dia.
O “islamismo”, originalmente uma religião, não desempenha nisso senão a função de bandeira de identificação e de mobilização.
E compreende-se melhor assim o que queria dizer quando trocei do “perigo islâmico”. Com efeito, para que as potências em ascensão na galáxia islamista possam aspirar a rivalizar com as ocidentais, e constituir desse modo um “perigo”, terão que ser cada vez menos islâmicas.
Se não ultrapassarem as limitações das sociedades guiadas pelas imposições do islamismo nunca serão perigo nenhum: nunca passarão da cepa torta onde vegetam há vários séculos.
Em termos simples: o Livro e o Profeta só passaram a ser ameaça para o Ocidente quando se encontraram com os computadores, os mísseis, a televisão, a internet, os cartoons, os aviões – toda a parafernália das realizações ocidentais.
Bin Laden e os seus não seriam perigosos se fossem uns ascetas a viver em cavernas e a comer passas e insectos, por mais fanáticos que fossem. Os únicos militantes que, do ponto de vista deles, conseguiram êxitos em empreendimentos anti-ocidentais foram aqueles que aprenderam em muitos anos a viver nas sociedades ocidentais tudo o que havia a aprender sobre a tecnologia de ponta e as suas fraquezas intrínsecas destas.
Daí o aparente paradoxo que apontei: o futuro desenvolvimento das forças islâmicas implicará que sejam cada vez menos islâmicas.
O que não significa que as potências disso emergentes, nascidas desse caldo de cultura que sintetizará ressentimentos seculares, identidades humilhadas e métodos e técnicas ocidentais, venham para se mostrar gratas e veneradoras aos que lhes serviram de modelo.
O mundo islâmico muito provavelmente apresentar-se-á cada vez mais ocidentalizado. O islamismo tenderá a ser mais e mais uma matriz fundacional, evocada como marca identitária.
E o Ocidente atingirá o seu limite natural: a globalização. Porém, e como decorre do que foi dito, essa universalização do “ocidentalismo”, se acarreta o fim do “islamismo”, não traz consigo a vitória e a segurança do Ocidente.

Guerras “religiosas”, não obrigado!

Segue-se o prometido artigo de Jaime Nogueira Pinto, publicado no sábado passado no Expresso. Um tanto fora do tom dos "moinhos de orações" que os ventos da época agitam incessantemente, mas há que creditar isso a seu favor. Comentários, só depois de ler - SFF.

Um tempo «pós-moderno» que quer acabar e acha que acabou com a religião, que desconstrói os mitos e os símbolos, que dessacraliza e desencanta o mundo e a História, não ao modo dos grandes revoltados, de Sade a Nietzsche e Marx, mas de uma forma pícara, ordinária, patética de pensadores «soft», de sibaritas pedófilos, de humoris­tas boçais, vê-se, de repente, confronta­do com o «choque das civilizações».
E que civilizações? O cliché dos fazedo­res de «opinião» direitinhos é de um lado a civilização esclarecida, aberta, democrática com todos os «valores bons» - o humanismo laico, a democracia participativa, a cidadania vigilante, os direitos do homem! E do outro os fanáticos do mundo árabe, mergulhados na Idade Mé­dia, no obscurantismo, na religião, governados por autocratas, a queimarem bandeiras da UE, a apedrejarem consulados, de barbas, mal vestidos, aos gritos de Alá é grande!
Contente, o comentador de serviço arranja os bons, os maus e os vilões da história:
Os bons são os progressistas de todos os quadrantes, que têm o valor de não ter valor nenhum, que absolutizam o relati­vo, que não acreditam em nada. Mas in­comodam-se por o Papa mandar na Igreja, por os «gays» não poderem adoptar, por o Inferno se manter.
Os maus são os tais árabes tradiciona­listas, religiosos, nacionalistas e todos os povos que ainda não abraçaram o modo de vida preconizado pelos bons.
Finalmente, os vilões, os piores de todos, são os ocidentais - americanos, eu­ropeus, católicos, protestantes, agnósti­cos - que não seguem o pronto-a-pen­sar humanitário e globalizante do «só é proibido proibir». Os que entendem que para haver civilização e política - que vêm de cidade («civitas», «polis») - é pre­ciso haver valores objectivos, mitos e ri­tos, convicções, hierarquias, fronteiras, exércitos. E que dizem que a utopia liber­tária é a receita para os demagogos, para a anomia, para o vale tudo e para a tira­nia que se lhe segue.
Mas a História não é um filme cor-de-rosa em que o que vem é sempre melhor que o que foi, como julgam os que se admiram de os Romanos pensa­rem e terem água corrente, acham que a razão começou no mundo com Voltaire e a Revolução Francesa e em Portugal com os capitães de Abril e o dr. Soares. Para trás, só trevas!
Os crentes no Deus do Livro - cris­tãos, muçulmanos, judeus - têm um sen­tido do sagrado que é, coerentemente, o seu primeiro valor. Respeitam e amam Deus sobre todas as coisas e os valores – políticos, de família, de amizade, de solidariedade - são uma continuação dessa ligação ao divino. Por isso, uma ofensa à religião como representar Deus, Cristo ou Maomé gro­tescamente, é uma ofensa pessoal ao que têm de mais querido.
No Ocidente, a separação do Estado e da Igreja, do político e do religioso, vem da Reforma e da construção do Es­tado moderno, ficando o poder político desligado do poder espiritual como con­dição da paz civil. Foi assim de Nantes a Vestfália e até hoje. E demo-nos bem com a receita.
Mas a descristianização na Europa e o «progressismo» secularizante querem transformar a Igreja numa espécie de Li­ga do bem-fazer ou agência humanitária tipo UNESCO, retirando-lhe o seu pa­pel de mediadora do sagrado, entre a Ter­ra e o Céu. Para isto contam também a falta de coragem e os complexos de mui­tos cristãos. O que não se passa nos Esta­dos Unidos, nem nas igrejas novas das Américas e de Africa ou nas igrejas perseguidas e de missão das comunidades mi­noritárias na Ásia.
No mundo islâmico, o renascimento religioso, aliado a um sentimento político de nacionalismo defensivo e solidário - na linha dos Irmãos Muçulmanos - está a levar ao poder grupos como o Hamas, com que os ocidentais vão ter que contar.
Porque a partir do fenómeno árabe corânico - das cidades da Síria e do Ié­men e do nomadismo do centro da Península arábica - floresceram culturas fortes militarmente, que fundaram impé­rios, que chegaram à Península Ibérica, que tiveram a sua tecnologia e a sua lite­ratura. A decadência política dos Esta­dos islâmicos, a partir do século XVIII incapazes de enfrentar a dinâmica políti­co-militar ocidental, é sentida pelas no­vas elites do mundo islâmico, como um estigma a superar. A ideia de que os oci­dentais lhes querem impor os seus «não-valores», o secularismo e o hedonis­mo das massas que é o consumismo, tor­na-nos odiosos aos seus olhos!
Não percebemos estas reacções, por­que no Ocidente nos habituámos a dei­xar agredir os nossos valores cristãos naqueles «media» públicos, pagos (tam­bém) com os nossos impostos, ou, iro­nia suprema em Portugal, num canal originalmente católico, onde hoje num programa de «soft-porno», a despropósito, se faz uma palhaçada patética do Pai Nosso!
Não podemos deixar que as manipula­ções da rua árabe - orientadas por radi­cais cínicos sem crença alguma - e as provocações dos fundamentalistas laicos do Oeste, nos envolvam, a cristãos e muçulmanos, numa guerra religiosa.
Os que temos fé – e aqueles que não a tendo, têm o sentido do sagrado e do respeito pelo sagrado dos que estão connosco nesta «civitas», que é o mundo – não nos podemos deixar, como nos Balcãs, arrastar para uma guerra “religiosa” provocada e chefiada por ateus!

A LENDA DO ARISTIDES

Desafiado pelo valoroso blogue Portas do Cerco a participar num discussão ali em curso sobre a mistificação conhecida por caso Aristides de Sousa Mendes, contribuo para esse peditório reproduzindo um excelente artigo publicado há algum tempo no semanário "O DIABO". Não sei quem é o autor, mas o que vale não é quem o disse, e sim o que foi dito. O pequeno artigo podia perfeitamente chamar-se "para bom entendedor meia palavra basta"; e bonito seria que se pudesse ficar por aqui, até por respeito para com um falecido e a sua família. Mas a falsificação da História talvez exija mais; e a quem queira saber mais recomendo a leitura do livro do Embaixador José Carlos Fernandes, editado pelo Instituto Diplomático e que certamente ainda não terá sido retirado da circulação. Quanto aos documentos originais do processo Sousa Mendes, onde se poderia constatar fácilmente quais os fundamentos do procedimento disciplinar e quem é que se queixou dele, esses provavelmente já terão sido postos a recato. Mas a mentira, neste caso, é demasiado coxinha para ir longe.

A LENDA DO ARISTIDES
Eram dois irmãos gémeos, de prosápia afidalgada, vindos de Cabanas de Viriato, onde tinham solar conhecido e onde nasceram a 18 de Julho de 1885. Ambos se formaram em Direito pela Universidade de Coimbra. E ambos ingressaram na carreira diplomática, um em Maio de 1910 e outro em Junho do mesmo ano. Um chamava-se Aristides de Sousa Mendes do Amaral e Abranches, o outro César de Sousa Mendes do Amaral e Abranches.Apesar da extrema igualdade de origem, rapidamente se distinguiram pela diversidade de qualidades, embora os dois fossem tidos por naturalmente bondosos, pacíficos, de bom trato e de formação familiar tradicional. Já em 1913 o César passara na carreira à frente do irmão, sendo promovido a 1.° secretário de Embaixada. E, em 1926, alcançou as plumas brancas dos diplomatas pela sua ascensão a Ministro Plenipotenciário de 2ª classe, tendo representado Portugal na chefia das Legações de Estocolmo, de Varsóvia, do México e de Berna. Numa breve passagem pela política, César de Sousa Mendes do Amaral e Abranches foi Ministro dos Negócios Estrangeiros, na última fase da Ditadura, em Governo já presidido por Oliveira Salazar. O irmão Aristides, porém, ia-se arrastando por postos consulares de minguado relevo, tendo falhado no concurso para conselheiro de Embaixada e acumulando processos disciplinares, porque, com frequência, as contas dos consulados por ele geridos... não andavam certas. Era bom homem, segundo se dizia. Mas também ganhara fama de limitados dotes intelectuais, tinha catorze filhos e, pelos postos por onde andara, constava ser propenso a aventuras dispendiosas, em proporção com os ganhos de que dispunha.A guerra apanhou Aristides de Sousa Mendes do Amaral e Abranches no consulado de Bordéus. Aí choviam os pedidos de foragidos que pretendiam, a todo o custo, lhes fosse reconhecida a qualidade de portugueses e, com ela, passaportes que lhes permitissem alcançar lugares tidos por seguros.De harmonia com as instruções do Governo de Lisboa, o Aristides de Sousa Mendes, tal como os outros cônsules de Portugal naquela altura, foi largo na concessão de passaportes. Mesmo em casos em que,normalmente, essa concessão seria duvidosa, ou negada liminarmente. Porém, no caso do consulado em Bordéus, houve refugiados que, tendo beneficiado de tais facilidades, depois de servidos, se queixaram ao Ministério dos Negócios Estrangeiros por a concessão de passaportes ter sido condicionada por contribuições para obras assistenciais patrocinadas pelo cônsul. Dessas queixas proveio a devassa, o inquérito e a passagem à disponibilidade, ou à situação de aguardar aposentação, para o cônsul Aristides, a quem sempre foi abonada a pensão respectiva. Aquele funcionário achava-se próximo do limite de idade e o seu passado não o abonava especialmente, o que, admissivelmente, terá contribuído para a solução adoptada, não obstante o ambiente favorável de que gozava o irmão César, sempre beneficiado pela amizade do Embaixador Teixeira de Sampayo, Secretário-Geral do Ministério, e pela simpatia de Oliveira Salazar. Naturalmente que se os rendimentos de cônsul no estrangeiro sempre se tinham mostrado insuficientes para as necessidades de Aristides de Sousa Mendes, essa insuficiência se tornou mais acentuada quando retirado para o seu solar em ruínas de Cabanas de Viriato. Mas tal situação, comum a muitos outros diplomatas, não deveria ser levada à conta de ajuste de contas políticas, ou castigo por desobediência a ordens superiores, que não se terá verificado.Aristides de Sousa Mendes do Amaral e Abranches foi, segundo dizem os que o conheceram, um homem bom, pouco dotado, talvez, para a carreira que seguiu, e infeliz nalguns passos da sua vida. Não merecia ser usado como joguete numa pseudo-glorificação que apenas visa, canhestramente, tentar demonstrar que Salazar não se mostrou favorável aos refugiados da guerra. Quem ainda se lembre das ruas de Lisboa, pejadas desses fugitivos da guerra e dos seus horrores, quem tenha colhido os depoimentos de muitos deles, sabe que isso não corresponde à verdade. Aristides de Sousa Mendes, sempre monárquico tradicionalista, fiel aos ideais do Estado Novo, nem sequer poderia enfeitar-se com os ouropéis de reviralhista e de revolucionário com que é costume ornar a memória de alguns. Realmente, não mereceu a especulação tecida em torno do seu nome. Esclarecedora quanto ao assunto parece ser a carta que o embaixador Carlos Fernandes recentemente dirigiu à Sra. D. Maria Barroso Soares. Tanto mais que o referido Embaixador sempre se mostrou afeiçoado ao Cônsul Aristides e compreensivo das dificuldades que ele experimentou em diversas ocasiões, só lhe repugnando as falsidades acumuladas e propaladas por motivo da constituição de uma "Fundação Aristides de Sousa Mendes" à qual aquela senhora preside. Realmente, o amor da verdade exige da gente de bem um particular empenhamento no desfazer de lendas mal engendradas.

Restos de quase nada

domingo, fevereiro 19, 2006

Uma causa nossa

Em boa hora lançada pelos Elos Club:
PETIÇÃO PARA TORNAR OFICIAL O IDIOMA PORTUGUÊS NAS NAÇÕES UNIDAS.

Eu perante a "ameaça islâmica"

A verdade é que o Islão está a morrer.
Ao choque da modernidade está a esboroar-se rapidamente.
Não tardará muitos anos que ao lado da Caaba os fiéis encontrem uma tenda da McDonalds, refulgente no seu letreiro encarnado.
Bem sei que a minha convicção vai contra os alarmismos generalizados, frementes perante o “perigo islâmico”, mas a solidão nunca me impressionou excessivamente.
Uns anos mais e no recinto sagrado serão tantos os turistas de máquina de filmar em punho e de carnes delicadas ao sol como os vultos envoltos nas vestes brancas dos devotos.
As análises que vejo espalhadas sobre “o islamismo” parecem-me em geral confundir vitalidade com simples estertores e manifestações de força com meras exibições de impotência e desespero.
Há-de haver quem me observe que desde há bastante tempo o islamismo é a religião que mais cresce no mundo, graças ao seu vigoroso proselitismo.
Conheço as estatísticas: o islão avança nas margens, enquanto vai estiolando por dentro. Conquista e converte estranhos, enquanto vai perdendo o coração pelos petrodólares, o hamburguer e a Coca Cola.
É a religião que mais cresce no mundo porque avança como uma mancha em África, para Sul, e em outras zonas de fronteira, como a Ásia Central, ou mesmo entre as multidões desenraízadas da Europa e das Américas.
Nada de estranhar: em confronto com os universos animistas a espiritualidade muçulmana apresenta uma superioridade incontestável; e perante o vazio espiritual do laicismo e do ateísmo, ou os exotismos pagãos e os esoterismos mais ou menos orientalizantes em voga no mundo ocidental, representa uma resposta obviamente muito mais elevada. Sempre oferece uma metafísica menos rudimentar, e as almas precisam.
No fundo, o islão ganha terreno onde o cristianismo desertou, inibido pelas condenações instaladas dentro de casa contra o que foi sempre a sua razão para estar no mundo. E cala-te boca, para que não me acusem de estar de dedo esticado contra a Santa Madre Igreja.
Apontam-me como sinais da pujança do islamismo as impressionantes mobilizações que um pouco em todo o lado vai conseguindo. Não me convencem de nada: o que vejo nessas mobilizações é política, apenas política, sendo a religião uma bandeira, ao lado de outras.
A religião, ela, vai morrendo envenenada pelo progresso da internet, das comunicações audiovisuais, das imagens que desfilam perante os olhos sedentos das massas islamizadas.
Falam-me do admirável dinamismo dos índices de natalidade: observação verdadeira, sobretudo em comparação com as sociedades do ocidente envelhecido. Mas deixem que o hedonismo, o conforto e os métodos anticoncepcionais façam o seu caminho – e verão o que fica dessa saúde demográfica.
E a explosão dos fundamentalismos, e dos terrorismos, o que digo eu?
Muito simples: o apelo dos fundamentalismos é característico de um universo que se desmorona. É a tentação para se fechar, em defesa contra a atmosfera adversa. Mas paradoxalmente os fundamentalismos enfraquecem o todo, reavivam divisões e feridas, quebram qualquer possibilidade de fazer uso do peso que a “massa crítica” disponível parecia garantir. E os terrorismos são sintomas da queda, são fraqueza, são a reacção de quem já tentou tudo e sente que não pode fazer mais nada. São a confissão da derrota.
Evidentemente que este último fenómeno implica perigo extremo para toda a gente; quem deixou de ter medo da morte, e qualquer apreço pela vida, sua ou de outros, não conhece limites. Todavia, como é fácil de entender, isso já não é “islamismo”, nem é de religião que se trata.

Cartoon do dia


Enrique Lacosta, Brasil, 8 de Fevereiro de 2006 (apresentado no fabuloso www.irancartoon.com)

Concurso de cartoons

A Danish paper publishes a cartoon that mocks Muslims.
An Iranian paper responds with a Holocaust cartoons contest.
Now a group of Israelis announce their own anti-Semitic cartoons contest.

Pois é verdade: proliferam os concursos.
Depois da iniciativa iraniana, e da provocação arab-european, surgiu agora em Israel um concurso que promete os melhores cartoons anti-semitas do mundo.“No Iranian will beat us on our home turf!
É o Israeli Anti-Semitic Cartoons Contest, e os originais concorrentes têm que se apresentar até 5 de Março.

Uma das primeiras obras a concurso. "Moisés no Sinai". Se o publicassem (se conseguissem..) em certos países ocidentais estavam tramados!

sábado, fevereiro 18, 2006

Nota de leitura do "Expresso"

Para concluir com os motivos de interesse que logrei encontrar por entre a espessura: vale a pena ler a entrevista de Manuel Fraga Iribarne, velha raposa da política espanhola e ibérica e que tem muito para dizer sobre a história destes últimos cinquenta anos; Salazar e Franco, Franco Nogueira, as relações luso-espanholas desde a década de trinta, a transição espanhola, a revolução portuguesa, são assuntos aflorados pelo olhar astuto do velho político galego.
Finalmente, o artigo de opinião de Jaime Nogueira Pinto. Gostei muito, e devo confessar que com alguma surpresa. O texto, oportunamente intitulado "guerras religiosas, não obrigado!", merece ser lido e destacado. Tratarei de o colocar aqui, logo que tenha tempo para o passar.
Muito bem feita a observação crucial sobre os animadores e entusiastas desta "guerra de religiões": eles não têm religião nenhuma! Mas querem que os que têm marchem em luta apocalíptica entre si...
"Os que temos fé - e aqueles que não a tendo, têm o sentido do sagrado e do respeito pelo sagrado dos que estão connosco nesta «civitas», que é o mundo - não nos podemos deixar, como nos Balcãs, arrastar para uma guerra «religiosa», provocada e chefiada por ateus".

A corrupção que não há

Como já perceberam hoje comprei o "Expresso", e encontrei-lhe mais interesse do que as minhas expectativas anteviam.
Por exemplo sobre essa temática da corrupção, a que aludi no postal anterior, encontra-se abundante matéria.
Sobre o universo futebolítico nem falo. Já nada nos espanta. Ao contrário, aquele senhor deputado que há uns tempos ficou famoso pela mala cheia de dinheiro não cessa de nos espantar.
Digam-me sinceramente se não parece cena de filme burlesco dos anos cinquenta aquela ideia de comparecer na sessão marcada pelo Ministério Público para recolha de autógrafos levando o braço convenientemente engessado - ao que parece de alto a baixo!
Tinha-lhe sido diagnosticada nesse mesmo dia uma flebite, e o médico que detectou a gravosa situação, no Hospital de Santa Marta, de imediato lhe colocou o gesso salvador. E a provar como nunca são demais os louvores à instituição familiar, verifica-se que o médico é cunhado do doente.
Só devemos estimar-lhe as melhoras, um político tão promissor. Tem todas as possibilidades de ascensão, jovem, talentoso e influente como é. Pelo caminho que leva atingirá rapidamente o patamar do seu colega que fazia ponto de honra em só fazer depósitos em dinheiro vivo, incompatibilizado de todo com os cheques, e que em menos de um ano conseguiu depositar praticamente um milhão de contos - que logo foram sendo transferidos para uma ilhas remotas de nome esquisito. Estão a ver as cenas, o cavalheiro sempre a carregar notas, dez mil hoje, vinte mil amanhã, cinquenta mil depois - e a assegurar que é tudo normalíssimo, simplesmente os clientes querem manter o sigilo e ele por força dos seus elevados princípios deontológicos também não pode revelar quem sejam, nem quais os serviços prestados...
Podem acreditar, li no "Expresso".

E a corrupção?

Por maior que seja a displicência do olhar, ela existe. E quando menos se espera salta novamente para as primeiras páginas.
Ao que disse agora um dos Sá Fernandes, falando da sua experiência recente, a naturalidade com que tudo se passa não permite duvidar da habitualidade.
Parece-me incontestável a relevância dos desenvolvimentos mais recentes e o caso agora em destaque possui uma força demonstrativa a que não é possível fechar os olhos.
A ser como contam os irmãos Sá Fernandes, um rico construtor civil ofereceu 200.000 euros para obter do vereador a conduta necessária a defender os interesses da sua empresa, a Bragaparques.
Os contactos meteram o irmão advogado, e os dois denunciaram os factos ao MP que tratou de gravar as comunicações telefónicas entre as partes e registar os encontros respectivos.
De acordo com o relato não parece ter sido difícil a tarefa, dada a descontracção e a confiança do corruptor.
O assunto é muito interessante a vários títulos.
Vou fingir que nem reparo no papel do Dr. Ricardo Sá Fernandes, a fazer de agente infiltrado. Será facto para registar, e lembrá-lo quando eventualmente num dos próximos processos em que seja advogado de defesa venha a arguir a nulidade dessas práticas.
O mais importante parece-me ser isto: a ser como eles contam, os irmãos Sá Fernandes comunicaram um crime de corrupção que estava em curso e as entidades policiais sob a direcção do MP puderam alcançar a necessária prova. Por meio de vigilâncias com captação de imagens e da intercepção de comunicações, nomeadamemte telefónicas. Tudo meios de investigação e de obtenção de prova que necessitaram de prévia autorização judicial . Todo um procedimento que teve que decorrer em poucos dias.
Vem a propósito recordar que ainda há pouco tempo a Assembleia da República se levantou para aplaudir de pé a proposta do deputado Duarte Lima de restringir o uso desses instrumentos aos chamados "crimes de sangue" (onde obviamente eles têm um escasso campo de aplicação).
Estivesse consagrada na lei essa posição, e o que aconteceria neste caso? Nem valia a pena denunciar a abordagem. Tudo ficaria numa situação de dize tu direi eu, é a minha palavra contra a tua, e o arguido presume-se inocente.
Nos meios políticos circula outra proposta, notoriamente mais política do que a de Duarte Lima mas que conduziria ao mesmo resultado: é a criação das famosas "comissões" para controlar as possibilidades de "escutas telefónicas".
Estivesse em vigor o regime sugerido por estes comissionistas, e o caso seria mais subtil: não havia qualquer proibição de utilizar esses meios invasivos da privacidade, mas certamente o pedido de autorização ainda andaria por aí pelos corredores a aguardar a análise da comissão.
Penso que os leitores estarão a entender as consequências práticas destas discussões teóricas.
E volto a lembrar o comentário da Dra. Maria José Morgado a que eu próprio acrescentei o meu, que aliás provocou forte indignação e incómodo em certos sítios: a classe política parece muito pouco sensibilizada para estas questões da corrupção...
Ou estará mesmo muito sensibilizada para o problema: segundo afirma peremptoriamente no Expresso, onde eu li estas coisas todas, o ilustre marido da Dra. Maria José Morgado, Dr. Saldanha Sanches, são certas e próximas as reformas na legislação processual penal que a curto prazo terão como efeito inviabilizar a investigação criminal por muitos anos.
Se ele o diz, ele saberá porquê. Perguntem-lhe a ele, que é uma fonte normalmente bem informada. Eu não sei de nada.

Das Arábias!!

Verdadeiras crónicas das Arábias, agora no Portas do Cerco.

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

O que é ser português?

A nova Lei da Nacionalidade, que eu ainda não li e por isso não vou comentar, tem dado origem a larga polémica.
Algumas devem estar certas, outras seguramente estão erradas.
Escrevo este apontamento apenas para anotar uma opinião expressa pelo amigo Humberto Nuno (até agora tem sido sempre amigo, e estou confiante em que não tenha aderido a algum núcleo da mano blanca e ande também a jurar a minha desgraça, mesmo respirando ele os ares infectos da cidade grande) que me parece um tanto ousada, para não dizer pouco pensada.
Diz o meu amigo que encontrou na lei o que chama o "único aspecto positivo desta alteração legislativa", que consistiria no facto de "os netos de portugueses nascidos no estrangeiro" poderem "agora obter a nacionalidade".
Isto porque "segundo a nova lei, é concedida a “naturalização aos indivíduos nascidos no estrangeiro com pelo menos um ascendente do segundo grau da linha directa de nacionalidade portuguesa e que não tenham perdido essa nacionalidade”. (sic)
Eu não sei se a lei diz precisamente isso, mas se o diz temo muito pelas consequências.
Imagine-se a seguinte história.
O senhor John Woo nasceu na Papua-Nova Guiné há 43 anos. Nunca de lá saiu, e exprime-se num razoável inglês que aprendeu na instrução primária, além de falar bem o dialecto da sua zona. Vive de vender umas bugigangas aos turistas.
A mãe é já velhota, mas era uma bela mestiça, filha de um missionário português que para ali foi destacado em 1910 e de uma jovem papua cujas formas roliças levaram à perdição o bom sacerdote transmontano. O pai era um cantineiro local, filho de um emigrante chinês e de uma rapariga que este tinha levado de Madagáscar quando por ali passou antes de se fixar finalmente na Papuásia.
O senhor John Woo tem portanto um ascendente do segundo grau em linha recta que tinha a nacionalidade portuguesa, e que nunca a renegou (o referido missionário veio a falecer aí por 1955 na Casa de Repouso para sacerdotes idosos de uma diocese do Norte).
Obviamente, também tem um ascendente no mesmo grau que tinha a nacionalidade chinesa, e outra papua, e outra malgache. Como todos temos quatro avôs, não é de estranhar.
O senhor John Woo tem um fraco, aliás muito forte: é louco por futebol. Não perde uma transmissão televisiva. E tornou-se um fanático das proezas do Figo, e do Ronaldo, e do Deco e de mais não sei quantos portugueses que rebrilham sob a camisola das quinas.
Vai daí, o senhor John Woo, lá na Papuásia, calhou a ver a notícia das novas leis portuguesas (ele não sabe bem onde Portugal seja, só conhece os craques da selecção). Diziam no aparelho, que transmite da Austrália e por isso tem algumas notícias dirigidas aos lusófonos locais, que agora bastava ter um avô português para que quem o queira e requeira possa também ser português.
Os meus leitores nem vão acreditar no que passou pela cabeça do John Woo: anda eufórico, lembrou-se logo do avô que as histórias da avó diziam sempre ser português.
O John Woo resolveu que também há-de ser português, como o Deco, e não pára de xingar a cabeça dos restantes ilhéus que simpatizam com as toscas selecções daquelas longínquas paragens.
Qual Vanuatu, qual Fiji, Marianas ou Kiribati !! O português John Woo sofre é por Portugal, ali em frente do écran, em qualquer bar da Papuásia!

Exercício autobiográfico






António Manuel Couto Viana (Tempo Presente, n.º 2)

Comissão de serviço


Mais Ezra Pound, no "Tempo Presente", neste caso em tradução de Fernando Guedes.

Download

Para a biblioteca do pensamento político, é na inestimável Revista de Teoria Política.

Tempo Presente


O sumário do citado número 2 de "Tempo Presente".

Honra a Goulart, e a Fernando Guedes

As duas traduções que ficaram expostas à avaliação dos leitores são trabalho de Goulart Nogueira.
Foram publicadas no n.º 2 da revista "Tempo Presente", em Junho de 1959, que creio constituir um marco, pioneiro e precursor, para o conhecimento de Ezra Pound em Portugal.

Il miglior fabro


Contra a usura

A luta contra o desemprego

Alguém no semanário "O Independente" deu-se ao trabalho de andar a folhear o "Diário da República" desde que este Governo tomou assento nos cadeirões ministeriais, e concluiu que o executivo liderado por José Sócrates nomeou em 11 meses um total de 2148 pessoas (para lugares dependentes de nomeação publicada em DR).
Mesmo descontando a tal brasileira que acabou desnomeada ainda são 2147.
É notável, mas não chega. A este ritmo, pelas minhas contas, só conseguirão cumprir a promessa eleitoral dos 150.000 novos empregos dentro de 64 anos.

Ezra Pound


Para o Je Maintiendrai.

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

Ezra Pound

No momento certo, a poesia certa: With Usura.
Publicarei a versão em português.

Com a usura nenhum homem tem casa de pedra firme
de blocos bem talhados e bem lisos (...)

Dez leis do Abrupto sobre os debates na blogosfera

Eu não gosto do homem, mas há que reconhecer-lhe o valor.
Apetece-me dizer dele o que Fialho de Almeida disse de outro: o seu pensamento é tal fornalha que anda sempre com os cornos em brasa.
Leiam-se as Dez Leis do Abrupto Sobre os Debates na Blogosfera, e admire-se a capacidade de observação: análise e sínteses perfeitas.
Raia os píncaros: "Os blogues colectivos morrem por implosão, os individuais por cansaço"...
Ah Pacheco, como te invejo!

De Mário Beirão, poeta da Pátria

"(...)
- Oh Pátria! Terra eleita da Beleza!
Não mais a turbação dessa tristeza,
Não mais essa miséria denegrida,
Esse cerrar de pálpebras à Vida,
Não mais a Cruz, o lívido cansaço,
Os Espinhos, o Fel, a noite do Horto,
Esse ar de quem se aparta, esse ar absorto,
Essa agonia a escurecer o Espaço!
Pátria, volve a ti mesma, à tua essência:
O sol, que surge, a claridade apura;
Findou a penitência...
E, entre o alvoroço de celestes hinos,
Tanger de liras e tanger de sinos,
Canta, na mística embriaguez da altura!
Canta, liberta flor, a tua graça,
Num timbre alegre de cristal sem jaça,
No incendido fervor
Desse coro de preces que se enlaça
Ao trono do Senhor!"


"(...)
Quis Deus que eu fosse o eleito que anunciasse
Ao lusitano Povo uma outra aurora!
(Clarões de assombro batem-me na face;
Liberta, brilha esta alma pecadora!)

E o perfume da Pátria me inebria;
Evola-se não sei de que roseira...

Seja o pregão da minha altanaria
O verbo novo,
Que, sobre a terra inteira,
Celebre a luz da redenção dum povo!"

(in Novas Estrelas, 1940).

O mellhor Rogeiro

Copiado da "Sábado" de hoje, sem autorização nem conhecimento de ninguém, um excelente texto de Nuno Rogeiro, ao seu melhor nível, evocando Agostinho da Silva.

Com nome próprio de doutor da Igreja, e apelido de português banal (da rua ou da presidência), George Agostinho Baptista da Silva foi um dos nossos mais entranhados, telúricos e "nacionais" intelectuais.
Como Santo Agostinho, entendeu e escreveu sobre a complexa coexistência de mundos essencialmente estranhos. Como Santo Agostinho, teve a coragem de mudar várias vezes de vida, sem nunca renunciar a ela. Como Agostinho, bispo de Hipona, deixou-nos "confissões" (no sentido exacto de profissões de fé) radicais sobre o "admirável povo português", essa entidade primeira e última onde acabava por depositar (sem substituto nem intermediário) todas as esperanças.
"Santo Agostinho" da Silva viveu vários regimes e governos, e nas suas páginas recorta-se, muitas vezes, a reflexão sobre o Mal à solta na Cidade, e a apropriação dos Estados por grupos de corsários.
Embora a teoria política em Agostinho da Silva esteja ainda por escrever, ao menos de forma sistemática (e não meramente "impressionista"), o hoje centenário saiu de Portugal no interregno que Pessoa olhava favoravelmente, três anos antes da institucionalização do Estado Novo, e percorreu a sua via de peregrinação (onde certamente encontrou os espíritos de Fernão Mendes Pinto, de Vieira, de Afonso de Albuquerque e de Ferreira de Castro) e exílio, sobretudo a partir da prisão em 1944. Previamente, refugiara-se na própria nação, para escapar à guerra fratricida em Espanha, mas o regime de "sal e azar" perturbava o seu reduto libertário.
Acabou por voltar ao rectângulo só no segundo ano de "primavera marcelista", não sem antes ter sido assessor internacional de Jânio Quadros, e ficar assim embrenhado nos acidentes das revoluções brasileiras.
Desbravador do sertão (o literal, e o das ideias), um jornal chamou-lhe, apropriadamente, "Agostinho da Selva". Português bandeirante, não metafísico mas mais que físico, foi, com Gilberto Freyre, o grande pensador da lusofonia, como espaço para além da política, mas muito aquém das ideias vagas. É que o cimento da língua leva a outras aglutinações: a própria noção de povo expande-se, e vai do Minho ao Amazonas.
Seareiro e Sorbonnista, poliglota e semeador de universidades, patriota enraizado, conhecedor do topo nacional como ninguém, foi também português renascentista, à procura de outros mares, com asas desmesuradas, solenes mas humanas.
Da análise erudita da literatura, chegou à nossa história, e vice-versa. A filosofia e a psicologia levaram-no à reflexão sobre a Coisa pública.
Filósofo à moda antiga, autor de apólogos dialogais, cartas de reflexão, alegorias da caverna, procurou ainda, como ninguém, o mistério das palavras: não só a sua origem, mas o seu destino.
Por fim, não foram nem os títulos académicos, nem as honras, nem os postos que o tomaram maior, ou mais homem. Quando se fala hoje na glória de Bill Gates, que deixou a universidade para um projecto especial de vida, lembramos Agostinho de Silva: as novas tecnologias só sucedem como "alavanca nacional", quando ao leme estiver alguém como ele.
Sem o espírito, não há máquina .

Diablo con mano blanca


Um quadro de Pedro Meyer

Lembrando Mozart

Oportuna evocação da Missa de Requiem.

Fialho de Almeida


"A opinião pública é a lição que repetem milhares de imbecis ensinados por algumas dezenas de malandros".
(cumprimentos para Cuba!).

E se mais mundos houvera lá chegara


Tristão da Cunha - the World's remotest island - comemora os seus 500 anos.
Tristão da Cunha: comendador de Torres Vedras, Capitão-mor da Carreira da Índia, Embaixador junto da Santa Sé... Descobriu as ilhas no seu percurso para a Índia, em 1506.
Um dos seus filhos, Nuno da Cunha (1487–1539), viria a ser Governador da Índia; conquistou Baçorá em 1529.
Recortes do meu baú das velharias.

A pílula abortiva

Segundo reza a História, os romanos comiam para vomitar e vomitavam para comer.
Acontecia nos banquetes, em que os convivas não conseguiam arranjar espaço no estômago para ingerir ao longo de horas e horas todas as iguarias postas à sua disposição. Nem queriam parar de comer. Para resolverem o problema, frequentemente, provocavam o vómito (dois dedos na goela, ou uma simples pena de ave, e já está) voltando depois para a mesa para continuar a encher a barriga.
Foram ao ponto de institucionalizar o hábito, criando o vomitorium, um compartimento que lhes permitia vomitar em local reservado para esta finalidade, voltando a seguir para a mesa para continuar a comer mais.
O objectivo era comer mais e mais, depois vomitar para em seguida voltar a comer, para depois vomitar de novo, e assim sucessivamente.
É a análise que me ocorre fazer sobre a questão da pílula abortiva - delicadamente apresentada em alguns sítios como "alternativa à cirurgia".

Nota do dia

Para ler esta manhã: "As caricaturas de Maomé" (ainda o malfadado assunto).

quarta-feira, fevereiro 15, 2006

As rapinas rapaces

Do cerne da calúnia,
As rapinas rapaces
Buscam a morte, o oiro,
Em lascivas caçadas.
Escorre-lhes das presas
o sangue, a amarga lágrima:
teu fuzil, caçador
não as encontra n’alma:
ocultam-se na terra,
no coração da carne!

Vibram rasteiro voo
As rapinas rapaces
nas caves inundadas
de fumo, álcool, escarro.
Na órbita das órbitas,
Roçam balofas asas;
Com duro bico imundo,
Picam luar e graça;
E devoram, com gula,
Meretriz e pederasta.

Na época do cio,
As rapinas rapaces
Aninham-se nos versos,
Espojam-se nas camas,
Toldam, em cada espelho
As virgens e os rapazes,
Alarmam o silêncio
Das furtivas passadas
E exibem um lençol
De poluídas pragas!

Plo tempo que não cessa,
As rapinas rapaces
Pairam sob a cabeça
De crua divindade.
Nada as destrói. Existem
Como hóstia nos altares
E adornam-se de pomba
E cravam-se de farpas
E gemem e suplicam
E morrem e renascem.

Aviso de extermínio,
As rapinas rapaces
Apontam-se com pedras,
Lumes, lixos, espadas
ou beijos repetidos
ou águas perturbadas
ou a mulher azul
ou o brinco de prata
ou o aço do braço
e o cristal da garganta!

Quanto é impuro e atroz
As rapinas rapaces
Arrastam para o ninho
Onde me encontro e canto.
Meu lirismo se afoga
Em palavras..., palavras...
Atinjo a extrema forma!
Destruo-me de imagens!
E mordo, com seis dedos,
O ventre da verdade!


António Manuel Couto Viana
(in Relatório Secreto)

Gaspar Castelo-Branco – foi decidido esquecê-lo

Com este título, o hoje moribundo jornal “O Semanário”, nomeava Gaspar Castelo-Branco como a figura nacional do ano de 1986. Era Director-Geral dos Serviços Prisionais quando, a 15 de Fevereiro de 1986, véspera da segunda volta das eleições presidenciais, foi assassinado pelas FP-25 Abril com dois tiros na nuca. Foi o mais alto cargo dirigente do Estado a ser vítima de um brutal e cobarde ataque no pleno exercício das suas funções. Nessa altura, os terroristas das FP-25A, por excesso de tolerância e decisão política, estavam em regime de cela aberta e misturados com presos de delito comum. Após a fuga de um grupo dos mais perigosos terroristas da Penitenciária de Lisboa, em Setembro de 1985, impôs medidas e condições duras de isolamento e separação entre reclusos. Estas eram contestadas pelos terroristas com uma pretensa “greve da fome”. Não cedeu. “Em países ocidentais os governos não cedem às greves da fome e pouca importância lhes dão” dizia. Mas por cá, era constantemente pressionado pela Comissão Parlamentar de Direitos Liberdades e Garantias, em particular por alguns deputados socialistas, bem como alguns movimentos cívicos de duvidosa parcialidade, mas que obtinham ainda assim algum eco na imprensa. Perante as críticas da comunicação social e dos ditos movimentos, o Ministro da tutela, Mário Raposo, declinava responsabilidades encaminhando-as para o seu director-geral, como se a orientação deste não fosse tomada de acordo com o próprio Ministro. O culpado seria o Director-Geral. Perante a demissão dos seus superiores hierárquicos e o silêncio imposto pelo governo, Gaspar Castelo-Branco assumiu as responsabilidades, que verdadeiramente não lhe cabiam, em circunstâncias particularmente difíceis. Só isso fazia sentido: por personalidade era um homem corajoso e frontal com um enorme sentido do dever e do bem público. Tornou-se o bode expiatório e pagou-o com a vida. O Governo acobardou-se e quinze dias após o seu brutal assassinato, os presos retomaram a cela aberta durante o dia, apenas fechada durante a noite. Conforme escreveu na altura José Miguel Júdice, parecia que afinal o assassinato teve uma justificação e uma razão de ser. A partir desse dia, o País apercebeu-se que o terrorismo era uma ameaça real. Nos dias seguintes, Cavaco Silva, então primeiro-ministro, mudou-se com a família para a residência oficial em São Bento. Todos os ministros, sem excepção, passaram a andar com guarda-costas e escoltados por vários seguranças pessoais. Os juízes e procuradores do processo FP-25A passaram a ser guardados dia e noite, pernoitando, às vezes, em locais alternados e sempre secretos. Apesar disso o Presidente da República em exercício Ramalho Eanes ou o recém-eleito Mário Soares não estiveram presentes no enterro tal como faltou o primeiro-ministro Cavaco Silva. Não houve um gesto visível de apoio público à vítima pelos seus superiores hierárquicos e membros dos órgãos de soberania. Curiosamente, nesse mesmo mês, na vizinha Espanha, um agente da Guardia Civil era assassinado pela ETA. O seu funeral teve honras de estado e contou com a presença de Felipe Gonzalez e Juan Carlos. “Se me derem um tiro, como reagirão os defensores dos direitos humanos, os mesmos que pretendem condições mais brandas para os terroristas?” -afirmava numa entrevista a um jornal 15 dias antes de morrer. A verdade, é que a sua profecia se realizou e não houve um único acto de repúdio público aos ditos movimentos. Em Outubro do mesmo ano começava o julgamento da organização. O maior fracasso do Estado de Direito do Portugal democrático. Não conseguiu condenar quem contra ele atentou. Mário Soares, com uma visão muito própria sobre a justiça, preferiu primeiro indultar e depois amnistiar as FP-25A com total passividade do governo PSD. Preferiu cumprimentar Otelo Saraiva de Carvalho após a sua saída da prisão e recusou uma legítima condecoração, proposta pelo governo, para o mais alto funcionário do Estado a cair no cumprimento do seu dever no Portugal democrático. Para ele, as vitimas e as suas famílias eram um pormenor desagradável num processo que queria resolver politicamente. O tempo pode atenuar a dor de um filho, mas não apaga a vergonha que o País sente por não ter sido feita justiça: os assassinos não cumpriram a pena, apesar de julgados e condenados em tribunal, e as vítimas foram esquecidas.
[Manuel Castelo-Branco]
(com a devida vénia a O Acidental)

Instantâneo

Os jornais dizem que o desemprego em Portugal atingiu números recordes: atingimos os 620.00 desempregados.
Os mesmos também já tinham tornado público que os bancos portugueses encerraram o ano que passou com lucros recordes.
Como se pode ver, deve ser injustificado o sentimento de pessimismo que muitos sentem em relação à situação: batemos recordes, e tudo indica que continuaremos no mesmo caminho.
É verdade que o actual governo foi eleito com base, entre outras, na promessa repetida da criação de 150.00o novos empregos.
Mas quem haverá para lhe cobrar a promessa?
A direita que temos e a esquerda que temos estão perfeitamente domesticadas. Atiram-lhes uns ossos e elas aí andam, contentinhas e a rosnar de satisfação.
Por estes dias andam entretidas a remoer a liberdade de expressão, o islamismo, a globalização, o choque de civilizações, o casamento dos homossexuais, e outros temas igualmente elevados.
O Irão e a Dinamarca têm sido muito falados.
O Zé e a Maria, falados de passagem em algumas campanhas eleitorais recentes, é que estão de todo afastados do campo das preocupações, e não se prevê que voltem a fazer parte da agenda.

terça-feira, fevereiro 14, 2006

Para iconoclastas

Eu não imaginava que pela longínqua Pérsia a arte do cartoon fosse de tal modo cultivada e admirada.
Desafio os curiosos a explorar o universo do www.irancartoon.com - the first information center of iranian cartoonists on the web.
Um mundo de irreverência e bonecada. (Não se estejam já a rir!!!)

Sessão de homenagem a Rodrigo Emílio

A Sociedade Histórica da Independência de Portugal organiza no próximo dia 18 de Fevereiro, sábado, pelas 18 horas, uma sessão de homenagem a Rodrigo Emílio no Salão Nobre do Palácio da Independência.
A sessão contará com a presença de José Campos e Sousa e com comunicações de Francisco Ferro, José Carlos Craveiro Lopes, Luís António Serra, Vasco Barata e Bruno Oliveira Santos, seguindo-se jantar nas instalações da SHIP.
Solicita-se a inscrição prévia!

Universidade e cultura


Capa da tal revistazinha, "Universidade e Cultura", aqui há pouco tempo lembrada pelo Rui Albuquerque (eu não precisava de ser lembrado, nunca me esqueço!!).
Entre a colaboração, destaco a do próprio Rui Manuel e a de Marcos de Sousa Guedes, atrás reproduzida, e ainda a de João Pacheco de Amorim, todos então jovenzinhos (pronto, lá estou eu outra vez entre os papéis e as memórias - assim não me safo à fúria dos esquadrões da mano blanca).
Como epigrafava então o Rui, "Há um tempo para tudo, e há mesmo um tempo para que os tempos se tornem a encontrar".

Science Fiction

Prosseguindo no contínuo desfolhar de páginas do passado, bem demonstrativo do meu irremediável anacronismo, próprio de quem é incapaz de aprender seja o que for, encontrei hoje um magnífico artigo de Marcos de Sousa Guedes que nem parece de 1983. Atente-se bem na atenção dada ao "Senhor dos Anéis" e a Tolkien, obra e autor nessa altura pouco menos que desconhecidos em Portugal. É um pequeno ensaio realmente notável, tanto pela abordagem feita como até pela juventude e erudição do autor (um verdadeiro adiantado mental, acreditem).
O artigo saiu no primeiro número de "Universidade e Cultura", revistinha portuense fabricada pelo Rui Albuquerque, na Associação Académica da Universidade Livre do Porto.
Faço questão de partilhar convosco o prazer de ler este artigo, sobretudo os que se interessam por estes temas de literatura de ficção científica.
Aqui fica, com um abraço ao Rui e ao Marcos, e como presente aos estimados leitores (e aproveitem, antes que cheguem as tropas da mano blanca e me encerrem a tasca).


O MITO E A UTOPIA NA LITERATURA MODERNA
O Mito e a Utopia têm representado, através dos séculos, duas constantes do pensamento e da Arte ocidentais; em cada época e em cada situação, traduzindo o que existe de mais profundo na alma e na vontade dos povos, é no Folclore e na Literatura, na Música tal como na Poesia e no Cinema, que muitas vezes se encontra a chave do fundo colectivo da concepção do Mundo própria de cada Nação e de cada Cultura.
Recentemente, uma nova corrente literária ocupou o lugar das antigas sagas, das canções de gesta e das lendas do folclore popular: longe do mero subproduto da sociedade de consumo a que muitos a querem reduzir, a Ficção Científica é, verdadeiramente, ponto de aproximação aos arquétipos do pensamento ocidental, ponta de lança de uma Civilização nas vésperas do terceiro Milénio.
As raízes mais remotas das tradições literárias míticas e fantásticas da Europa estão, talvez, nas sagas célticas e germânicas e nos contos homéricos, uns e outros com origens referenciáveis no segundo milénio AC . Transmitidas e enriquecidas oralmente por uma casta diferenciada e marginal, os bardos e aedos, essas narrativas representaram, desde sempre, muito mais do que meras lendas ou exercícios de imaginação: nelas estavam contidos os vectores essenciais da concepção geral do mundo e da vida (Weltanschauung) dos seus autores.
Encaradas não como fantasias mas como mitos fundacionais (e a Eneida romana ou as sagas irlandesas dos Tuatha de Danann são elucidativas a este respeito), pertencia-lhes um importante papel de consolidação social, enraizando a comunidade no tempo (daí a importância das genealogias e filiações divinas da maioria dos seus heróis) e, por conseguinte, conferindo um sentido e uma dimensão supra-históricas às suas instituições e tradições sociais e políticas.
Estas características essenciais mantêm-se presentes através da Idade Média, após o processo de cristianização, corporizadas nas gestas e epopeias de cavalaria: do Amadis e do Cid peninsulares até ao Parsifal germânico de von Eschenbach e à mais cristianizada Mort D'Arthur de Chrétien de Troyes, os ciclos do Graal e do Rei Arthur não são mais do que a expressão, adequada às características mentais e religiosas da época, de tradições e referências mais antigas e caracterizadamente europeias.
O mesmo papel tiveram, de um modo geral, as formas poéticas de tipo cantiga de Amor introduzidas e divulgadas na mesma época, nas cortes e solares da Borgonha e da Occitânia, por trovadores e cavaleiros fiéis de Amor; mais uma vez, por trás do formalismo literário encontra-se uma estrutura mítica bastante complexa e desenvolvida, reflectindo modos de ser e de estar no mundo específicos e que permanecem como laços espirituais de identificação e parentesco no seio de uma sociedade em profunda transformação. Na base de todas estas narrativas encontram-se uma série de mitos e arquétipos de pensamento próprios das culturas indo-europeias e que dificilmente se encontram, ao menos de forma tão pura, em qualquer outra cultura do globo, com a notável excepção da japonesa.
E é conveniente notar que, sendo de um modo geral criações literárias semi-colectivas, é característica das narrativas míticas que muitos dos seus elementos mais importantes e significativos tenham, como salientou Evola (1) "sido expressos praticamente sem o conhecimento dos seus autores, os quais mal se deram conta de obedecer a certas influências ... com uma sensação bastante confusa do alcance dos temas por eles postos no centro das suas criações". O mito, na sua veste literária, aparece assim como uma óptima oportunidade de dissecar profundamente a psicologia colectiva de um povo e de trazer à superfície as grandes linhas de força de uma tradição cultural.
Surge-nos assim claramente aquilo a que Georges Dumézil (2) chamava a concepção tripartida do Mundo, base filosófica e cosmogónica de uma verdadeira ideologia indo-europeia que distinguia, na sociedade, três grandes grupos complementares e hierarquizados: o sacerdote, o guerreiro e o produtor.
Subjacente a esta concepção está um modelo de ética que preserve o pluralismo e a especificidade dos valores e dos grupos humanos; é notória no entanto, em todo o Ocidente, a ascensão da ética guerreira de valorização do heroísmo, que faz do mito do Herói um dos mais típicos do pensamento tradicional europeu. A epopeia, fundamental no desenvolvimento das culturas indo-europeias, não é mais que a expressão desse substrato mental específico centrado em valores históricos comuns.
A ideologia heróica traduz-se na formação de uma moral baseada numa estética e não numa metafísica, conducente a uma visão pessimista a trágica da vida e do destino; daí a constante presença dos mitos de luta e revolta do homem contra os deuses (são exemplo os mitos da revolta dos titãs, da revolta de Prometeu ou a saga germânica de Siegfried). Mas a revolta heróica é, antes de mais, uma revolta positiva. O herói, pelas suas acções, procura dar-se uma forma, forjar uma alma - tal como o caracterizava Phillipe Seller, o acto heróico traduz o "desejo de ser deus".
No pólo oposto, também a tradição utópica tem sido, pelo menos desde Platão e a República, uma constante do pensamento europeu. Na sua génese não estarão ausentes preocupações metafísicas que traduzem a influência do pensamento religioso oriental. Assim se poderá, em parte, explicar a presença, durante a Idade Média, de um pensamento milenarista e apocalíptico associado a uma série de heresias religiosas (o fenómeno cátaro, a heresia de Joachim de Fiore) a que não são estranhas influências maniqueístas; no Renascimento, a Utopia regressará em força com o inglês Thomas More, cujo livro deu o nome à ideologia. A partir daí, da Cidade do Sol de Campanella ao Paraíso Perdido de Milton, tem sido grande a tentação de estabelecer definitivamente as linhas mestras da sociedade perfeita, da sociedade dos Iguais, de onde estariam erradicados todos os males e pecados da sociedade civilizada.
Desde logo se vislumbra aqui a grande oposição de fundo desta corrente com a literatura de raíz mítico-heróica: os autores das utopias, por diversas que sejam, têm em comum o facto de estarem pessoalmente descontentes com a ordem política e social do seu mundo; mas em vez de realizar o gesto mítico do Herói que molda e transforma o mundo à sua imagem ("Não há transformação do mundo que não assente antes de mais numa ultrapassagem de si próprio", afirma Alain de Benoist (3) ), preferem refugiar-se na imaginação cómoda de um mundo já perfeitamente estruturado, sem a necessidade de intervenção do supremo esforço criador que no pensamento tradicional mudava o mortal em semi-deus ...
Na busca do ambiente ideal para a sua acção, as construções utópicas localizaram-se geralmente em ilhas ou cidades perdidas, como a Nova Atlântida de Francis Bacon. E isto a tal ponto que se pode falar, com Ritter, de um pensamento oceânico, utópico e racionalista, contraposto a um pensamento continental, realista e maquiavélico.
O aparecimento, por meados do séc. XVIII, do desastroso filósofo francês Rousseau e das suas teses do bom selvagem, deu novo ânimo a todos os desgostosos da vida e da realidade, que imediatamente se lançaram na busca, nalgum continente mais longínquo, de qualquer tribo esquecida, mais ou menos humanizada, que mantivesse intactas as virtudes "esquecidas" da inocência, da ingenuidade, da igualdade e da liberdade totais.
O fracasso desta pesquisa levou ao aparecimento, acompanhando a Revolução Industrial e o desenvolvimento técnico e económico por ela provocado, de uma nova geração que, em desespero de causa, procurava no progresso e no sentido da civilização e da História a chave da cura dos males humanos, alheios e próprios: é a época áurea dos Fourier, dos Saint-Simon, dos Proudhon, dos Owen, dos Marx, dos Bakounine ..
A Ficção Científica, fenómeno literário característico do século XX, reflecte de uma maneira única, nos seus expoentes mais elevados, a continuação das influências, mais ou menos conscientes, que marcaram o desenvolvimento da cultura e da arte europeias e ocidentais e cuja génese se procurou traçar em grandes linhas. É de facto aqui que se detectam mais facilmente as formas que o mito heróico é forçado a assumir na sociedade tecnológica e democrática; as epopeias transferiram-se para a periferia da Galáxia ou para os estranhos universos paralelos e as utopias realizam-se em mundos concentracionários e cinzentos.
Tem no entanto este género literário como antepassado mais directo o chamado conto gótico, produto impressionista da reacção anti-racionalista de fins do séc. XVIII (depois corporizada no movimento romântico alemão) e que está na base de toda a literatura fantástica.
A partir do clássico Castelo de Otranto, escrito cerca de 1760 por lord Walpole, desenvolve-se uma corrente que se caracteriza, nas palavras de Robert Heinlein, " ... ora negando o mundo real in toto, ora baseando a narração em uma ou várias premissas falaciosas: fadas, mulas que falam, viagens através do espelho, vampiros".
Desenvolvida através do séc. XIX por Edgar Allan Poe, Lewis Carroll, Selma Lagerlof, Gerard de Nerval e Hoffman, entre outros, a literatura fantástica verá a sua consagração máxima nos anos 30 com o americano Howard Philip Lovecraft.
É nesta altura que se processa o seu cruzamento com um tipo literário surgido da literatura de viagens do séc. XIX, e que conjuga ambientes estranhos e exóticos com um certo gosto pela Máquina, pelo Progresso e pelas transformações que a tecnologia trará à mentalidade humana. Júlio Verne é, talvez, aqui, o autor que maior divulgação atingiu; mas são de citar também o americano Edgar Rice Borroughs e o britânico Herbert George Wells, o famoso autor de A Guerra dos Mundos. Daqui irá nascer a Ficção Científica clássica, que conhecerá o seu apogeu na América dos anos 40: os mitos fundacionais americanos reflectem-se quase primariamente numa geração de autores que coloca o problema da conquista do espaço em termos em tudo semelhantes aos dos antigos pioneiros do Oeste; o papel que a América se arrogava no xadrez político do pós-guerra, de garante das liberdades e inimiga das tiranias ocultas era pretexto para complexas intrigas em que, de um modo geral, sob a bandeira dos impérios galácticos se erguia a estrutura da mundovisão americana.
Nenhum exemplo se poderá porém encontrar melhor para definir aquilo que, dentro da Ficção Científica, representa a forma moderna da sobrevivência, mais ou menos literária, da tradição do pensamento e das mitologias heróicas da antiga Europa do que a obra de John R. Tolkien, O Senhor dos Anéis (4).
Um ignorado professor de Oxford, especialista em linguística e mitologias indo-europeias, foi construindo lentamente, nos anos que antecederam a II Guerra, e em jeito de história contada ao seu filho, um mundo fantástico inteiramente novo, dotado de uma própria cosmogonia, uma própria história, uma própria linguística. O resultado foi, talvez, a obra mais fascinante de toda a literatura fantástica deste século.
Impregnada do sentimento trágico sempre presente nas epopeias heróicas, o Senhor dos Anéis mostra-nos, na própria forma do seu desenvolvimento narrativo, uma concepção do mundo ligada à tradição e às memórias europeias: apanhado por um golpe do destino, é a própria reacção do Herói, não se conformando com o papel de joguete, de peão nas mãos dos deuses e de forças que o ultrapassam infinitamente que, no que começa por ser uma revolta, acaba por conduzir a uma posição já não submetida ao destino mas criadora dele - no momento em que, levado às últimas consequências do esforço heróico, se dá a consagração do herói como "incessante traço de união entre os deuses e os homens, que mutuamente se conceberam à sua imagem" (5).
E assim, o que parecia a princípio ser a descrição de um conflito localizado vai-se avolumando, ao longo das páginas de Tolkien, até culminar no afrontamento decisivo das potências da luz e das trevas. Tudo começa porque Frodon, o Hobbit, espécie de Gnomo simpático e bonhomme, se encontra na posse de um misterioso anel de ouro de que ignora a providência. Mas Gandalf, o Mágico, figura que recorda irresistivelmente os antigos druidas da tradição céltica, traz um aviso inquietante: o anel do hobbit é nada mais que o Anel do Poder, forjado na noite dos tempos por Sauron, o Senhor das Trevas, o Inimigo, e destinado a conferir-lhe o poder total sobre o Universo. Do fundo das suas terras de Mordor, "onde vivem as Sombras", Sauron localiza o anel: os dados estão lançados e mesmo o Senhor das Trevas não poderá escapar ao destino da confrontação.
E é impossível, mesmo ao leitor mais desprevenido, resistir ao fascínio desse mundo de hobbits e feiticeiros, de reis e camponeses, e à tentação de acompanhar os Povos Livres da Ocidentalidade - Anões, Elfos e Homens - na sua luta pela liberdade ameaçada pelo poder das trevas, pela escuridão vinda de Leste.
O simbolismo da obra de Tolkien tem constituído apaixonado tema de debate: enquanto certos grupos racistas americanos nele viram uma defesa das suas teses de "pureza biológica", outros entenderam-na como um subtil estudo de Geopolítica (de que Tolkien seria profundo conhecedor) dirigido ao avanço militar da União Soviética. Tais interpretações, podendo conter a sua parcela de verdade, serão sempre secundárias em relação ao modo como Tolkien revelou, numa notável actualização da narrativa mítica, a estrutura profunda da alma europeia: o sentimento, expresso por mitos fundadores e lendas heróicas, por tradições sagradas e por certezas intuitivas, de pertencer a uma pátria e a uma terra eternas e firmes, forjada pela vontade e pelo sangue dos antepassados e para cada geração legado a transmitir aos vindouros.
Seria interessante fazer um estudo aprofundado das diferenças e pontos de convergência entre a obra de Tolkien e a de uma escritora oriunda da nova esquerda americana, escrita trinta anos após a saga do professor inglês: a trilogia do Feiticeiro de Terramar, de Ursula Kroeber le Guin (6).
Tendo como centro de referência não já a época guerreira mas o ascetismo sacerdotal, a obra de Ursula le Guin descreve um mundo oceânico, de Inverno e brumas, povoado por gentes silenciosas e simples, enquadradas por uma Ordem de magos-sacerdotes imbuídos da suprema missão de "assegurar o equilíbrio", de velar pelo desenrolar da vida e das leis universais, de "entender a profunda natureza dos seres e das coisas".
Uma cosmogonia deste género, se por um lado está também de acordo com formas míticas ancestrais, por outro revela uma psicologia própria, a que corresponde um tipo sacerdotal, mais feminino do que viril, de espiritualidade. "Chamamos lunar a esta espiritualidade", diz Evola numa das suas obras mais famosas, (7) "porque o símbolo da prata esteve sempre, em relação ao ouro, como a Lua para o Sol: a Lua é o astro feminino que já não tem em si o princípio da própria luz". Desse ponto de vista, o Senhor dos Anéis corresponde abertamente a um ciclo de mitos solares, continentais, nórdicos, enquanto que o Feiticeiro se projectará numa mitologia marítima, lunar e mediterrânica.
E é curioso notar que enquanto o processo heróico corresponde, em termos próximos das concepções de Nietzsche, a uma vontade de superação constante, o miticismo acaba por se traduzir na vontade oposta, na vontade de abandono, num desejo de integração que se conduz, afinal, a uma sublimação dos mitos e das crenças dos sectores mais espiritualizados das esquerdas centrados num igualitarismo comutativo e numa esperança quase religiosa de fraternidade estática e não-violenta. Teríamos assim, no fundo, nestas duas obras em confronto, a representação telúrica mais elevada de duas concepções do mundo e da vida que, traduzidas nos termos estreitos das mitologias políticas contemporâneas, corresponderiam às direitas e às esquerdas.
Paralelamente à corrente de obras fantásticas, é possível distinguir, dentro do universo da Ficção Científica que aqui nos serve de ponto de referência e fio de Ariana na revelação dos grandes paradigmas de algumas estruturas de pensamento - aquele conjunto de obras e autores que representam a continuidade e a evolução do pensamento utópico.
Uma nota fundamental distingue, porém, as modernas utopias das tradicionais: a literatura do séc. XX conheceu uma curiosa inversão do fenómeno utópico, que agora se projecta naquilo que podemos designar por anti-utopias ou utopias negativas: a descrição do pior dos mundos, apontado como aquilo que sucederá à nossa civilização se insistir em prosseguir o seu caminho. Nota-se aqui claramente a manutenção do mesmo espírito desgostoso da vida que levou em qualquer época às construções utópicas; mas com a agravante de se insinuar que a felicidade já não é possível, seja onde for - nem mesmo na ilha mais retirada.
E: nesta linha que se inscrevem romances tão conhecidos como o Admirável Mundo Novo, do filósofo britânico Aldous Huxley, o célebre 1984 de George Orwell, o Fahrenheit 451 de Bradbury, a Utopia 14 do americano Kurt Vonnegut, e uma infindável série de outros.
Pela sua própria natureza, no entanto, tentativas filosófico-literárias deste género esgotam-se em si próprias e não asseguram continuidade.
Os leitores cansam-se facilmente das denúncias ao inferno da técnica e do progresso e, entre as anti-utopias ocidentais e a Ficção Científica soviética - onde autores de categoria como V. Saparine e Victor Juratleva se empenham na descrição do homem novo saído da revolução mundial - as preferências do público voltam-se decididamente para os escritos de ficção dos grandes cientistas - e aqui é de salientar a obra literária do grande astrofísico inglês Fred Hoyle - ou para aventuras irreais em mundos povoados de duendes e seres do espaço, de autómatos com preocupações religiosas, de demónios expulsos do Inferno e dos inevitáveis cavaleiros errantes, herdeiros em linha recta dos mais puros contos góticos e fantásticos dos séculos passados - uma linha onde se distinguem autores como Ray Bradbury, Clifford Simak, Roger Zelazny, Philip Jose Farmer, Poul Anderson, entre muitos outros de grande qualidade.
É inegável, deste ponto de vista, a importância da Ficção Científica como reveladora, nesta época, de referências milenares. Mas enganar-se-ia quem lhe atribuísse meramente um papel de guardiã do passado, em mitos projectados no Espaço apenas por comodidade literária e beleza narrativa.
O mais importante papel da Ficção Científica contemporânea, aquele que mais fortemente ficará assinalado numa futura história do pensamento deste fim de milénio, é o ter permitido, pela primeira vez, a união indissolúvel da Ciência e da Poesia como condição indispensável para forjar um homem completo. Na época em que o milenar sonho de ir às estrelas se aproxima pela primeira vez da realidade, o mérito dos escritores de Ficção é terem dado um enorme contributo para a formação de uma mentalidade realmente aberta; não foi por acaso que uma das maiores obras de F .C. - o Cântico para Leibowitz, de Miller - esteve na base de O Despertar dos Mágicos, a obra fundamental de Pauwels e Bergier.
Contrariamente ao que pretendia Freud, uma comunidade saudável não é aquela que se liberta dos seus mitos mas sim aquela que os sabe actualizar e manter vivos; e a Ficção Científica, criadora de alguns dos maiores mitos contemporâneos, só será assim desprezada por aqueles que são hoje incapazes de imaginar o futuro - simplesmente porque perderam a memória da riqueza do seu passado.
Marcos de Sousa Guedes
Notas:
(1) Julius Evola, Il mistero deI Graal, trad. porto Ed. Vega, Lisboa 1978.
(2) vd. a sua obra principal Mythe et epopée, Gallimard, Paris 1974 (3) artigo publicado em Le Figaro Magazine, nº 6, 1978.
(4) editado em Portugal pelas Publicações Europa-América, tradução de Fernanda Pinto Rodrigues (3 vols), Lisboa, 1981.
(5) Alain de Benoist, artigo cit.
(6) editado em Portugal pela Livros do Brasil, col. Argonauta n.º 276; trad. de Eurico Fonseca, Lisboa, 1980.
(7) Julius Evola, op. cit. vd. também Rivolta contra il mondo moderno (1934) e Les hommes au milieu des ruines trad. francesa Ed. Les Sept Couleurs.