quarta-feira, outubro 26, 2005

A prostituição

Tenho lido de várias origens opiniões convergentes sobre a necessidade e a conveniência de "legalizar a prostituição".
Como acontece frequentemente com as soluções que se apresentam para problemas complexos, também esta proposta enferma de simplismo e equívocos vários, que a meu ver a tornam irrelevante no debate em que pretende situar-se.
Antes do mais, o que se pretende dizer com "legalizar a prostituição"?
A pergunta é pertinente, porque ao contrário do que parece ser convicção generalizada a prostituição em Portugal nada tem de ilegal.
Existe no Código Penal a incriminação do lenocínio, configurado como um crime contra a liberdade e a autodeterminação sexual. É punível por isso a actividade de quem se dedique a explorar as prostitutas, abusando destas, mas não as prostitutas nem a prostituição.
Se a ideia de quem fala em "legalizar a prostituição" consiste apenas em abolir essa incriminação, então o que desaparecia é a perseguição criminal dos chulos, não das prostitutas, que não existe.
Na verdade, a prostituição foi encarada pelo legislador como um comportamento perfeitamente lícito, se livremente assumido (invocando expressamente a orientação de demarcar o Direito Penal de qualquer conotação moralista).
Por conseguinte, não deve ser esse o cerne das posições em apreço. Confirma-se que não, ao observar que as principais preocupações a que procuram dar resposta os que falam na tal "legalização da prostituição" correspondem a finalidades de ordem sanitária (a saúde pública) ou de ordem fiscal (os impostos).
Mas sinceramente, não compreendo o que propõem que seja feito no plano legislativo. Tornar obrigatório que aquele ou aquela que queira exercer a prostituição esteja inscrito como tal e se sujeite aos cuidados médicos adequados a prevenir os riscos que tais actividades normalmente implicam?
Essas imposições legais correspondem a uma versão actualizada do regime que já vigorou em Portugal em outros tempos, quando as prostitutas estavam sujeitas a matrícula no Governo Civil e a vistoria periódica.
Porém, e como me parece claro, em primeiro lugar a legislação nesse sentido é que implicaria, diferentemente do direito actual, uma ilegalização da prostituição (só seriam lícitas as actividades de quem tivesse carteirinha profissional e cumprisse as normas, sendo por consequência ilegais todas as actividades nesse ramo de clandestinos e biscateiros, que nem os mais ingénuos podem afirmar que deixariam de existir).
Deste modo, e paradoxalmente, criava-se uma situação em que as polícias teriam que andar atrás de quem livremente praticasse prostituição sem obedecer à regulamentação obrigatória, passando autos, multas e participações - situação oposta à actual, e de resultados muito duvidosos.
E, acrescento, afigura-se que uma situação dessas seria muito pouco compatível com o enquadramento jurídico contemporâneo. Aliás, mesmo em outros tempos, em que sempre seria possível deter quem fosse encontrado em actividades sexuais (por conduta imoral ou outra qualificação qualquer) e conduzi-lo/a à esquadra para averiguar da regularidade da sua situação profissional, não me parece que essa regulamentação tivesse produzido grandes resultados no controlo efectivo dessas actividades.
A concluir: desconfio que na prática essa política iria conduzir a que apenas cumprisse realmente os cuidados sanitários definidos como obrigatórios quem agora voluntariamente já o faz. Tanto na vertente da oferta como na vertente da procura.
Quanto aos argumentos fiscalistas, que dão relevo à conveniência de arrecadar as receitas fiscais correspondentes a uma actividade económica com grande expressão: lamento desiludi-los, mas também não acho provável que os proventos tivessem qualquer significado. Actualmente, nas casas abertas ao público onde essa actividade é exercida com disfarce (sob denominações de bares, boites, salas de diversão, salões de massagens, etc) todo o pessoal está devidamente "legalizado". Ou seja, não trabalha lá ninguém que não tenha contrato de trabalho, declarado à inspecção, e que desconte os seus impostos e para a segurança social. Naturalmente que esses contratos dizem que a categoria profissional é de empregado de balcão, bailarina, recepcionista, cozinheira ou lá o que calhe, e todos referem o ordenado mínimo nacional, mas a verdade é que todos os que têm estabelecimento aberto estão defendidos contra as fiscalizações.
Se a prostituição, por força de lei, passasse a só poder ser exercida em locais licenciados e por profissionais registados como tal, acreditam os leitores que os contratos de trabalho iriam declarar rendimentos muito superiores, e o número de trabalhadores a descontar iria subir radicalmente? Eu não acredito.
Nesta altura alguns replicarão que o que não falta por aí são locais esconsos que não precisam de proteger o alvará que não têm, nem sequer como café, e gente que se dedica à prostituição sem ter qualquer cobertura contratual.
É verdade. Mas alguém acredita que essa economia paralela deixaria de proliferar caso a lei limitasse a actividade às sociedades civis ou empresários individuais devidamente autorizados, aos locais devidamente licenciados, aos profissionais devidamente habilitados?
Por favor: se nem os canalizadores ou os electricistas de ocasião podem ser eficazmente controlados pela máquina fiscal como seria detectada e controlada a prostituição espontânea e avulsa?
Iria legislar-se no sentido de tornar obrigatória a passagem de recibo ao cliente (a medida conseguiu aumentar muito as cobranças em relação aos médicos, por exemplo)? E para estimular a exigência do recibo seriam concedidos benefícios fiscais nessa matéria, em sede de IRS?
Uma vez que o escrito já vai longo, termino. A minha convicção, em síntese, baseada em algum conhecimento da realidade, é que a "regulamentação legal" aludida pouco iria modificar tanto no que respeita à saúde pública como no que toca às receitas fiscais. E continuaria a existir, como existiu sempre, a prostituição que não assumiria o nome, porque nenhum dos sujeitos envolvidos no acto está interessado nessa oficialização.
As opiniões em análise relevam muito mais de uma visão fetichista e mágica da lei, que conduz à crença de que mexendo na legislação se mudam os factos a que ela se refere, do que propriamente de um conhecimento autêntico da realidade.

8 Comments:

At 6:11 da tarde, Blogger Rodrigo N.P. said...

É longo mas é um excelente artigo!

 
At 6:15 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Prostituçao = Casa de Campo de Madrid.

 
At 7:50 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Não quero ser importuno mas, ainda aqui, quero meter a minha colherada. A culpa é sua Azinhal, repito, porque com uma perspicácia intelegentíssima apanha sempre o essencial das questões estimulando assim a vontade de quem o lê para contribuir com alguma análise adicional.

Julgo que atrás dessa legalização está a tentativa de banalização de uma visão atroz sobre o ser humano. Mera máquina que outros podem utilizar, mero material que outros podem consumir: como num escravo. Já não basta comprar serviços, pode alugar-se o corpo.
"Profissão?" "- Prostituta".

Não é para rir. Chegou ao meu conhecimento que, na Alemanha, uma senhora foi privada do abono de desempregada, porque tendo sido chamada pelos serviços de emprego a comparecer nas instalações de um promitente empregador, recusou o posto quando verificou tratar-se de "serviços sexuais". Como a actividade está legalizada nesse país, a recusa do emprego foi considerada ilegítima. Revoltante? Vale-nos ainda - mas até quando... - o senso comum e o pudor da generalidade das pessoas.

João Baptista

 
At 12:47 da manhã, Blogger Arruda said...

Sou a favor da legalização porque:

- A legalização regulamentaria como se poderia exercer a actividade acabando com o que hoje se verifica nas ruas e estradas do nosso País.

- Daria uma efectiva protecção a quem quer exercer essa actividade

- Como está agora a "prostituição" pode se dizer também é um caso de saúde pública. Com a legalização facilitaria o controlo das doenças sexualmente transmissíveis como a Hepatite e a SIDA

 
At 8:27 da manhã, Anonymous Anónimo said...

O Arruda por acaso leu o post?

 
At 10:30 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Uma coisa parece verdade: o que está, está mal. Se estamos de acordo, então é preciso mudar. Não interessa defender o que existe apenas porque se desconfia que nada mudará. Vamos dar o próximo (lógico) passo e corrigir o que for preciso.

 
At 12:49 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Não é correcto afirmar que nada mudará.
O que se desconfia é que tudo se pode passar como se passa no caso do "jogo legal": criam-se e reconhecem-se por lei monopólios altamente lucrativos de jogo/serviços de sexo e consequentemente os órgãos policiais terão que passar a perseguir o jogo/serviços de sexo ilegais: prender uns jogadores de batota em sociedade recreativa ou apreender sorteios de quermesse, como se passa todos os dias, porque são "exploração de jogo não autorizado", ou as livres empreendedoras de esquina e franco-atiradoras de pensão, porque praticam prostituição não autorizada...

 
At 4:10 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Eu digo que sim.

Porém não agora.

http://www.meretrizzimajuiza.org

Saudações seguras, Paulo Dinis

 

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