quinta-feira, outubro 27, 2005

Os professores

Antigamente e durante muito tempo, um professor era uma personalidade local em qualquer das nossas vilas e aldeias. Em muitos sítios, não era possível encontrar mais ninguém com instrução, a não ser o padre. Por conseguinte, o professor, a par do padre e eventualmente do médico, eram influentes e venerados, ouvidos muito para além do âmbito estrito das respectivas esferas de actividade.
Esse estatuto diferente das pessoas comuns da terra tinha consequências ao nível da sua expressão exterior (nas suas vidas, no seu vestuário, na sua casa), e naturalmente existia também na sua situação económica.
Um professor nunca ganhou fortunas, mas o seu vencimento modesto colocava-o ainda assim notoriamente num patamar superior ao do operário ou do trabalhador rural cujos filhos educava.
Quando alguém ia falar com o professor do filho fazia-o respeitosamente, com a reverência devida a quem tinha a missão de dar aos rebentos o que os progenitores não podiam dar-lhes - e que todos sabiam ser importante.
Dizem-me que este Portugal do século XIX e da maior parte do século XX já desapareceu, e em muitos aspectos devemos congratular-nos com isso.
Todavia, ainda assim quero chamar a atenção para a relevância de algumas mudanças ocorridas na posição relativa dos professores que julgo serem decisivas nos males de que de vez em quando nos queixamos quando se fala da educação.
Agora, os professores em qualquer vilória do nosso país são conhecidos pela população local como uns rapazes e raparigas que vivem nuns quartos alugados ao mês em casa da D. Balbina ou da D. Felisberta. Que são de muito longe e só vão lá estar até conseguirem colocação numa escola mais a seu jeito. Que comem habitualmente na tasca do Catita, perto da escola, onde se servem umas refeições em conta, por entre uns viajantes e uns motoristas de passagem. Há quem lhes chame os "meias-doses", porque é costume pedirem uma dose para dois de maneira a diminuir os custos. Por vezes aos fins de semana vão a casa, normalmente levando um o carro e compensando o outro na vez seguinte, porque com organização poupa-se algum.
Os pais dos respectivos alunos sabem de tudo isto. Como sabem perfeitamente que nenhum operário especializado, nenhum barbeiro ou electricista ganha menos do que o professor do filho. No parque de estacionamento, na balbúrdia em redor da escola, os veículos dos docentes distinguem-se dos outros por corresponderem notoriamente aos apertos do respectivo orçamento.
Quando os encarregados de educação vão falar com os senhores professores, é agora habitual falar-lhes de alto, quando não com agressividade e arrogância. Compreende-se, porque são uma categoria de gente caracterizada pela fungibilidade e transitoriedade, descartáveis e substituíveis a todo o tempo, e que ainda por cima não cumprem as suas obrigações e não têm onde cair mortos. As obrigações, já se sabe, subiram imenso: têm o dever de instruir devidamente todas as crias dos exigentes progenitores, sem os traumatizar com contrariedades ou esforços, e ainda ministrar-lhes educação que em casa não se pode porque nunca há tempo e aliás isso é função da escola.
Perguntarão a que vem toda esta conversa. Respondo que me ocorreu por estarmos num contexto em que o descontentamento do pessoal docente vai traduzir-se em novas manifestações efémeras de revolta, e de novo vamos assistir à argumentação dos governantes sobre os "privilégios", as "corporações", os "regimes especiais", os "interesses instalados", e outras figuras de estilo, próprias da desvergonha de quem fala.
Porém, o problema de fundo ultrapassa muito as circunstâncias de um momento. No campo da educação, como noutros domínios, a funcionalidade, o êxito do sistema, o seu prestígio, dependem muito de imagens, de representações mentais, de simbolismos. Acontece que tudo isso também passa, cruamente, pelos aspectos materiais. A degradação da classe docente para os fundos da escala, em termos económicos e sociais, nunca permitirá alcançar os níveis qualitativos que se pretendem para o sistema de ensino. E tudo indica que é essa visão, eu diria "albanesa", de nivelamento por baixo, de funcionarização e proletarização da classe docente, que está na cabeça e nos actos da casta governante.

5 Comments:

At 1:27 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Ora, ora, já lá vai o tempo em que os professores eram mal pagos. Desde Guterres que isso acabou. A situação descrita, que bem pode ser real, não engloba a grande maioria que já está colocada onde quer. Se juntarmos a um bom ordenado a reduçao da componente lectiva, ou trabalhos de amanuense no MNE e outras que tais, os profs são uns privilegiados. E antigamente, juntamente com os médicos, era a única profissão com emprego garantido. Quanto ganha um prof. do sec. com, digamos,10, 15 anos de carreira?

 
At 1:41 da tarde, Anonymous Anónimo said...

En Portugal...¿Los profesores son agredidos por alumnos y padres de alumnos como pasa en España?

 
At 1:41 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Parabéns pelo seu magnífico texto.Deveria ser enviado à Ministra da Educação acaso Sua Exª tivesse capacidade de entendimento.
É uma vergonha o que este bando de ressabiados socráticos tem feito pelo desprestígio social e económico dos professores.

velhodorestelo

 
At 7:35 da tarde, Anonymous Anónimo said...

A redução da posição dos professores não se deve apenas ao que aconteceu recentemente, mas também à própria atitude dos professores. Muitos deles vestem-se como rapazitos e rapariguitas, em concurso com as alunas a mostrar o umbigo. Para ser respeitado é preciso dar-se ao respeito.
De qualquer forma, o Estado devia dar mais autoridade aos professores e escolas na manutenção da disciplina e autoridade. Mas não.

 
At 12:32 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Parabéns pelo post. Depois, porque escreveu o que eu,há já algum tempo, sentia sem conseguir passar para papel. Eu sou professora. Senti, no sangue, todas as letras que o senhor escreveu. Se, por ventura, estivesse no princípio de carreira, garanto-lhe que mudaria logo, nem que fosse para servir como doméstica. Tal é o meu descontentamento. Sinto-me humilhada, calcada, desviada das minhas tarefas.

 

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