segunda-feira, outubro 24, 2005

A Idade da Inocência

De acordo com as notícias de hoje, Fátima Felgueiras está cada vez mais perto de uma vitória também na frente judicial. Ou nem chega a ser julgada, ou sairá triunfante de um julgamento patético. Não resisto neste ponto à vaidade de relembrar o que já aqui tinha exposto sobre o tema, e como houve comentadores que quase me chamaram tolinho; como se eu alguma vez os tivesse enganado...
O resultado da epopeia felgueirense não é de estranhar; afinal, como a boa senhora se tem fartado de explicar, àquém e além mar, ela é perfeitamente inocente. Aliás tal como as personalidades políticas que ela conheceu durante a sua carreira, todos de uma inocência perfeita nas mesmas práticas em que ela se viu solitariamente perseguida.
É oportuno recordar que todos os réus do caso Casa Pia são, de igual modo, inocentes. Todos eles, personalidades da nossa melhor sociedade, e os seus ilustres advogados, vedetas maiores do nosso foro, têm abundantemente exposto o facto.
De Paulo Pedroso, Ferro Rodrigues ou Herman José nem se fala: são inocentíssimos, e quem disser o contrário leva processo em cima.
Tal como eles, todos os pesos-pesados da nossa casta bancária, hoje reunidos em cimeira, em manifestação de força e exibição televisiva de músculo, para país ver, protestaram contra a insólita perseguição que lhes foi movida; e protestaram orgulhosos a sua consabida e indiscutível inocência.
Já o Cristiano Ronaldo também tinha alertado as massas, como se fosse preciso, de que é um inocente; uma vítima indefesa de ciladas malévolas.
Pelo que li em todos os jornais, completou-se um ano sobre o início de um processo na Venezuela em que são arguidos vários portugueses. Como é unanimemente apontado nos relatos de toda a imprensa, há lá um piloto português que está completamente inocente. Em igualdade de circunstâncias, obviamente, com a restante tripulação. O comandante está inocente e a hospedeira também está. Acresce que as passageiras, Virgínia, Antonieta e Margarida, são inocentes também, como elas mesmas já declararam pacientemente aos órgãos de informação.
Não deveríamos parar por aqui, mas o espaço não chegaria. Por exemplo, existe por aí um maxiprocesso sobre o meio ligado aos negócios futebolístico-políticos, tornado famoso pela designação do "apito dourado", que só ele reuniu na solidariedade do papel de processado umas centenas de inocentes. Querem melhor exemplo de inocência que o Capitão Valentim?
Claro que podemos sempre trazer à memória a figura de Isaltino, um verdadeiro modelo de inocência. Mas não está sózinho, podemos recuar no tempo e encontramos autênticos monumentos à inocência, como Duarte Lima e António Saleiro (o que já foi reconhecido).
E há ainda, em pleno exercício de inocência na distrital de Lisboa do PSD, o discreto António Preto, portador de inocência às carradas (por vezes em malas).
Enfim, vivemos um tempo de inocência. A vida político-judicial da nossa época parece contagiada pela teologia moderna: assim como esta esvaziou o inferno (a que admite que ele exista) decretando o fim do pecado, também aquela aboliu a responsabilidade e a culpa, assentando na inocência geral. Não há culpados. E todos viverão felizes para sempre.

4 Comments:

At 1:56 da manhã, Blogger Rodrigo N.P. said...

Certeiro e corrosivo.

 
At 2:24 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Tive que sorrir enquanto lia, só porque está muito bem escrito! Você acertou em cheio! E não foi só neste "número". Foi no "bilhete" inteiro. O Caso do Procurador também já mexe... Vamos ver o que fica desta greve judicial.
Nos países do teceiro mundo, a justiça está na mão dos políticos. Nos antigos países de leste, a justiça estava na mão da política. Nós somos de leste.
Um abraço.

 
At 2:29 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Por erro não "assinei".
JSM (Interregno)

 
At 4:44 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Em cheio nas moscas! E na porcaria, também.

 

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