quinta-feira, setembro 22, 2005

Imunidades e insanidades

Tenho-me esforçado por estar calado, mas não resisto a registar algumas breves notas e comentários suscitados pelo dilúvio noticioso à volta do caso Fátima Felgueiras. Evidentemente que serão insignificantes face ao muito que haveria para dizer, mas ficam como desabafo.
Antes do mais, quero expressar a minha admiração pelo talento revelado pelo advogado da senhora, ou por quem com ele trabalha nesses assuntos, na habilíssima manipulação da ignorância dos jornalistas (a somar-se à brilhante exploração das incongruências legislativas e da máquina judicial).
Dou como exemplos alguns títulos que li ao acaso na imprensa.
Num, espalhado rapidamente, dizia-se que a recém chegada pediu à PJ para ser detida. É bonito, mas obviamente é um disparate (para além de ser mentira, como se soube depois). Com efeito, era um facto amplamente conhecido que existia mandado de detenção pendente em todos os sistemas de informação que controlam as entradas e saídas no país, mandado esse a que o SEF ou a PJ não podiam deixar de obedecer. As polícias actuaram conforme o mandado, não a pedido da arguida - que seria ridículo, não se dando o caso de ter mesmo que ser detida.
Noutro título, também triunfalmente afixado em diversos órgãos, informava-se que a fugitiva não pediu nem pedirá ao tribunal qualquer imunidade. A bravata serve para alindar o retrato aos olhos de quem nada sabe, mas não tem sentido nenhum. O estatuto de imunidade ou existe ou não existe; estando a arguida abrangida por alguma causa de imunidade a mesma tem que ser levada em conta por qualquer tribunal, independentemente de manifestações de vontade dos sujeitos processuais.
Finalmente, a nossa melhor imprensa anunciou como novidade garrafal que Fátima era candidata à Câmara de Felgueiras. Ora acontece, como é público e notório, que tal candidatura foi apresentada juntamente com as outras dentro do prazo legal para tal - estava formalizada e oficializada há um mês! Toda a gente a podia verificar no Tribunal, na Câmara, no Governo Civil, no STAPE, na CNE...
E quanto a isto fico por aqui.
Agora vamos à norma subitamente tornada famosa.
É ela o artigo 9º da LEOAL (Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais), que sob a epígrafe "Imunidades" dispõe o seguinte:
1 - Nenhum candidato pode ser sujeito a prisão preventiva, a não ser em caso de flagrante delito, por crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a 3 anos.
2 - Movido procedimento criminal contra algum candidato e indiciados estes definitivamente por despacho de pronúncia ou equivalente, o processo só pode prosseguir após a proclamação dos resultados das eleições.

Na edição da Comissão Nacional de Eleições anotada por Maria de Fátima Abrantes Mendes e Jorge Miguéis (uma edição, digamos, "oficial") o artigo é acompanhado tão só de uma anotação: "Este preceito visa acautelar a dignidade que deve rodear um acto de grande importância cívica como é uma eleição autárquica, impedindo que o processo eleitoral possa sofrer sobressaltos ou seja interrompido."
A singularidade e pobreza do comentário, claramente declamatório e inútil, explicam-se facilmente: nunca tal norma tinha sido objecto de atenção por parte da doutrina, nem havia nenhum caso de aplicação da mesma por parte da jurisprudência.
Por outras palavras, o artigo tinha até agora passado despercebido, sem que ninguém fizesse o reparo que a sua análise impõe: estamos perante mais uma situação de legislação avulsa não diremos que feita com os pés mas certamente que feita por mãos que de técnica legislativa percebem tanto como eu de pesca submarina.
O que é que significa estatuir numa lei eleitoral que "Nenhum candidato pode ser sujeito a prisão preventiva, a não ser em caso de flagrante delito, por crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a 3 anos"?
Será que por força das relações entre lei especial e lei geral (lex specialis derogat lex generali) a primeira estabeleceu assim um regime quanto à aplicação da medida de prisão preventiva que afasta o regime geral constante do Código de Processo Penal? Se a resposta for sim, poderiam então aplicar-se prisões preventivas prescindindo dos requisitos gerais exigidos no art. 204º do CPP (fuga ou perigo de fuga, receio de continuação da actividade criminosa, de perturbação do inquérito, etc).
Mas, dessa forma um regime que se pretendia manifestamente mais restritivo acabaria afinal por permitir a prisão preventiva em múltiplas situações em que o regime normal não a permite! Não, não pode ser este o sentido da norma. Pensando na mens legislatoris, é indubitável que o legislador teve em mente restringir, limitar, a possibilidade de prisão preventiva.
Deste modo, é forçoso concluir que aquilo que se quis dizer foi que só pode ser aplicada prisão preventiva verificados que sejam os pressupostos gerais, previstos no CPP, e cumulativamente, além desses, os requisitos fixados na lei eleitoral.
Está imperfeitamente expresso, mas só pode ser isto.
Porém, sendo assim, não se entende o porquê da inclusão do segmento final da norma, onde se exige que esteja indiciado crime "a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a 3 anos". Então este não é e foi sempre um requisito genérico para a medida de prisão preventiva? Se já consta da lei geral qual a utilidade da sua reiteração na lei especial? Ou os redactores não sabiam que esse já era um requisito legalmente previsto?
Resta portanto, com utilidade para a respectiva compreensão, que a norma estatui que "nenhum candidato pode ser sujeito a prisão preventiva", "a não ser em caso de flagrante delito", e "por crime doloso". Os conceitos de flagrante delito e de crime doloso encontram-se na lei geral, e não merecem aqui comentário.
A dificuldade na definição do âmbito de aplicação do preceito está na interpretação a dar à expressão "nenhum candidato pode ser sujeito a prisão preventiva". Isto pressupõe a qualidade de "candidato" no momento da consumação dos factos criminosos verificados em flagrante delito ou ao menos no momento da decisão judicial que decida a medida de coacção? Nesse caso, a qualidade de "candidato" adquire-se com a simples apresentação da candidatura na secretaria judicial, ou com a anterior intenção de o fazer, ou só com a posterior admissão definitiva da candidatura?
E avancemos então, mais longe e mais alto: os dizeres "nenhum candidato pode ser sujeito a prisão preventiva" significam não apenas aquele sentido ou sentidos que eu estive a procurar, mas aquilo que me pareceu ver defendido publicamente por ilustres constitucionalistas - ou seja, que alguém que seja candidato a eleições autárquicas (não sei precisamente a partir de que momento, se da formação da sua vontade, se da formalização da candidatura no tribunal, se da admissão judicial desta) não pode mais ser submetido à medida de prisão preventiva - o que implicaria que tanto nas situações em que essa medida tenha sido decretada e não aplicada, designadamente por fuga como acontecia com Fátima Felgueiras, como nas situações em que já está a ser aplicada - tal medida teria que cessar até "proclamação dos resultados das eleições".
Sublinho que se for essa a interpretação correcta, estão ao abrigo da norma todos os factos, ocorridos em qualquer momento, em que os seus autores não tenham sido apanhados em flagrante delito e que não constituam crime doloso a que corresponda moldura penal superior a três anos de prisão - independentemente de tais factos em nada se relacionarem com actividades políticas, e independentemente de os seus autores já estarem sujeitos a prisão preventiva antes de serem anunciadas as eleições.
Se assim é, parece-me muito mal que o não tenham anunciado em todas as cadeias e também a todos os partidos políticos. Na verdade, é conhecida a dificuldade que muitos partidos sentem para completar as suas listas. E se os detidos preventivamente fora de flagrante delito (é o que acontece normalmente nos casos de tráfico de droga, terrorismo, associação criminosa, violação, abuso sexual de menores, burlas, homicídio, falsificações, corrupção, peculato, fabrico de moeda falsa, etc. etc. etc.) tivessem sido informados dessa hipótese certamente que se disponibilizariam a candidatar-se às eleições.
Ainda seriam certamente mais de quatro mil... tivesse havido a devida divulgação e teria sido assegurada a felicidade de muita gente.

5 Comments:

At 5:45 da tarde, Anonymous Anónimo said...

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At 7:34 da manhã, Blogger Jansenista said...

Os factos recobrem-se do Direito como podem, e mesmo assim lá fica, de vez em quando, uma nadega de fora: foi agora o caso de Felgueiras.
PS: V. e que era o homem do selo dourado? Ian Fleming teria adorado!

 
At 12:55 da tarde, Blogger Teófilo M. said...

Caro Manuel, como não sou especialista em Direito, poderia informar-me se os casos de tráfico de droga, terrorismo, associação criminosa, violação, abuso sexual de menores e homicídio, não tem moldura penal superior a três anos?

 
At 2:25 da tarde, Blogger Manuel said...

Evidentemente que têm, em qualquer dos casos.
Mas como também é evidente, e foi isso que o texto visou salientar, em regra quem está preso preventivamente por estar indiciado em algum desses crimes não foi "delito em flagrante delito".
Conhece-se algum caso de violação ou de terrorismo, etc., em que o arguido tenha sido detido "em flagrante delito"?
Portanto, todos beneficiariam da imunidade em referência (a norma diz que não se pode ser sujeito a prisão preventiva "a não ser em caso de flagrante delito, por crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a 3 anos". Exige esses requisitos cumulativamente!
Mas, francamente, pensei que isto tivesse ficado clarinho no texto que estamos a comentar. Peço desculpa por estar a explicar-me tão mal.

 
At 11:58 da tarde, Anonymous Anónimo said...

excelente post

 

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