quinta-feira, agosto 18, 2005

Sangue, suor e lágrimas

Há dias um amigo deste espaço elogiou a minha “facilidade em escrever”. O intuito não era ofensivo, era simplesmente descartar-se das responsabilidades – eu desafiava-o para desenvolver também um blogue e ele assim, coitado, não pode - porque não tem a mesma facilidade em escrever. De caminho passava-me a mão pelo pêlo. Claro que engoli, mas irritou-me. Facilidade? Que sabe ele das minhas facilidades ou dificuldades? Quem sabe da tenda é o tendeiro. Eu é que posso dizer o que custa. Para usar palavras de outro, que têm a vantagem de já estar escritas, aqui só há sangue, suor e lágrimas. Se o pobre soubesse do meu trabalho e dos meus horários caía para o lado.
A verdade é que não existe tal facilidade. Nunca houve tal. Um bom texto, para aproveitar outra vez frases já feitas, nasce de uns dez por cento de inspiração e de noventa por cento de transpiração. Por exemplo, o leitor encontrou já aqui belos textos de Gustavo Corção, que é sem dúvida um grande escritor. Pois dizia este que nunca publicava um artigo sem que, depois de o “acabar”, o lesse pelo menos umas sete vezes – sempre refazendo e alterando o que não soava bem.
O mito da inspiração é música para românticos e preguiçosos. Cai bem nos espíritos de quem procura mistificações ou alibis para a inércia. Mas não existe tal. O que existe sempre em literatura, como em qualquer arte, é trabalho de oficina – tendo atrás a vida, a imaginação, a criatividade, o génio individual, ou lá o que quiserem, mas sempre e necessariamente o trabalho oficinal. Não há espontaneidade que não nasça de muito trabalho.
Claro que sempre houve quem se deleitasse a compôr a imagem. É muito conhecido entre nós um trecho célebre de Fernando Pessoa, que era um grande pintor, em que ele explica aos vindouros a génese da sua sequência “O Guardador de Rebanhos”. Deixou ele escrito que andava à cata de inspiração há um ror de tempo, e nada. Parecia que a fonte tinha secado. E súbita noite, sem aviso ou prenúncio, chegou-lhe repentina vontade de escrever, como se uma força superior o comandasse, e vá de correr para uma mesa onde de jacto foi escrevendo em êxtase profundo os seus versos, até ao fim. Mão oculta pegara na sua e lhe guiara a escrita, enquanto em transe o autor/receptor obedecia.
Evidentemente que a historieta é uma imposturice em que Pessoa é fértil. Serve para encher a imaginação das donzelas letradas, dos ingénuos e dos místicos. Mas é de todo mentira. Os poemas que compõem aquela sequência foram laboriosamente compostos ao longo de anos, até assumirem a forma final e lhes ser dado o enquadramento unitário por que ficaram. Alguns deles nasceram mesmo intervalados de bastantes anos, como acontece também com os poemas da “Mensagem”, a quem o poeta acabou por unificar num livro/poema, em políptico harmonioso e feliz.
A moral da história que a tire quem quiser.