sábado, junho 11, 2005

De 1977 a 2005

Continuando com uma valente crise de preguicite aguda que me indispõe para alinhar prosa própria, mas não querendo privar-vos de alimento espiritual, acrescento outro artigo de Manuel Maria Múrias - este publicado em 1977. Falando de emigração, veja-se como se chega à imigração...

UM SUBSÍDIO PARA MATAR PORTUGAL
No dia 10 de Junho, o Presidente da República disse na Guarda o seguinte:
Os erros de concepção política, a falta de visão sobre os destinos do mundo moderno e a consequente insuficiência do ritmo do desenvolvimento no nosso país lançaram nos caminhos da emigração, nas últimas décadas, mais de um milhão dos nossos compatriotas. Este facto, se outros não houvesse, bastaria para condenar o regime que governou o País até Abril de 1974.
No dia 20 de Julho, uma nota do Conselho de Ministros anunciava-nos que se ia promover a emigração nos seguintes termos:
O plenário do Conselho de Ministros aprovou um decreto-lei, de acordo com o qual os portugueses que pretendem emigrar e tenham asseguradas condições de trabalho ou de residência no país do destino poderão vir a beneficiar de concessão de subsídio reembolsável desde que façam prova de insuficiência económica.
Quer dizer: por um lado o Presidente da República condena o regime anterior por ter promovido inconscientemente a emigração: era a falta de visão política e insuficiente ritmo de desenvolvimento que a provocava; por outro, o seu governo promove conscientemente a emigração, subsidiando-a generosamente através de empréstimos reembolsáveis, sem juro ou a juro baixo.
Entramos assim em pleno reino do absurdo, da impotência — e das contradições vergonhosas.
Vamos aceitar sem discutir que o anterior regime, depois de cem anos de incompetência dita democrática que nos colocou na cauda dos países mais pobres do mundo, poderia ter enriquecido Portugal em meio século, partindo do zero e com várias guerras internacionais a rondar-lhe a porta. Vamos partir do falso princípio histórico que não se electrificou o país, não se fez nem uma fábrica, não se lançou nem um porto nem um quilómetro de estrada. Vamos considerar como dado objectivo e dogmático que o dr. Salazar e o dr. Marcello Caetano eram duas bestas quadradas — e que o dr. Palma Carlos, o Gen. Vasco Gonçalves, o dr. Mário Soares e o Gen. Eanes é que são grandes estadistas. Vamos ainda, sem fazer prova, afirmar que, depois do 25 de Abril, o progresso deste país tem sido espectacular e brilhante. Vamos esquecer o ouro acumulado nos ominosos tempos e que foi desbaratado pelos vários ministros das Finanças mais ou menos socialistas que nos governam desde Abril de 74... Vamos dar tudo isso (que é gigantesco) como abono à argumentação do sr. Presidente da República.
Pedimos-lhe em contrapartida que nos mostre um instrumento legal do anterior regime (só um...) em que se incentive a emigração, subsidiando-a financeiramente.
Que, perante o crescimento económico do mundo inteiro, nós não tivéssemos podido pôr-nos ao lado das nações mais ricas do universo e não tivéssemos, por isso mesmo, satisfeito as necessidades básicas das populações e, deste modo, houvéssemos promovido indirectamente a emigração — é uma coisa. Que haja hoje em Portugal um governo com o despudor de fomentar a emigração — é outra.
Serve para condenar o regime anterior o êxodo maciço e involuntário de um milhão de portugueses. Não serve para demitir este governo a promoção planeada e subsidiada de não se sabe quantos outros milhões? Não se condena este regime pelo mesmo motivo? Não se auto-condena o sr. Presidente da República pela mesma razão?
Entramos em pleno reino do absurdo e da impotência. Somos governados por quem nos quer expatriar. Boa parte dos tostões que pagamos ao Estado para criar novos empregos e sarar a chaga vergonhosa da emigração vão ser gastos pelo Estado em pagar a emigração. Enquanto a França oferece 70 contos por cada português emigrante que regresse à Pátria, Portugal oferece outro tanto, ou mais, para que os portugueses se exilem. Chegámos a um nível de degradação inimaginável. Estabiliza-se a democracia, expulsando de Portugal os portugueses. Legalizam-se todas as infâmias cometidas até ao 25 de Novembro. Vivemos o gonçalvismo sem gonçalves. O governo que se condena pela política da emigração continua a merecer a confiança do Presidente da República.
Sabíamos que tudo se passaria assim. Assistimos, na prisão, ao exílio de mais de uma centena de milhar de técnicos, expulsos da Pátria por serem «fascistas». Vimos, entre náuseas, o dr. Mário Soares viajar por todo o mundo, tentando colocar os nossos excedentes de mão-de-obra. Ouvimos (muito cépticos) o discurso crítico do Presidente da República na Guarda. Lemos aterrorizados a nota do Conselho de Ministros anunciando o fomento da emigração...
Somos, realmente, concretamente, objectivamente uma nacionalidade moribunda. Para aguentar no poder um governo incapaz — expulsamos de Portugal os portugueses. Iremos ver, daqui a nada, como na União Indiana da senhora Ghandi, lançada uma campanha de esterilização colectiva às nossas mulheres — com prémios a quem não tiver filhos, com castigos a quem tiver muitos. Suicidamo-nos conscientemente. Suicidam-nos os nossos senhores do poder.
Nada nos resta senão o exílio. O exílio ou a revolta interior. Portugal é Portugal. Transcende as instituições democráticas. Para se defender a Democracia, não se pode matar Portugal. Isso é o que estamos a fazer. Friamente. Planeadamente. Desgraçadamente.
(In A Rua, n.º 69, pág. 3, 28.07.1977)