domingo, março 20, 2005

A miragem centrista

Em contraponto aos que não acreditam na direita, temos os que não acreditam no centro (resta sempre a hipótese de não estarem a falar do mesmo, ainda que usem as mesmas palavras...).
Exemplo desta corrente é o artigo do jornalista Rui Ramos publicado há dias no "Portugal Diário".

A miragem centrista
Há semanas que os sábios oficiais ensinam ao povo que tudo em Portugal se resolverá agora ao «centro», nomeadamente as eleições presidenciais de 2006. As direitas parecem convencidas. Apedrejando embora o Dr. Freitas, todos gostariam, como ele, de deitar fora o sobretudo ideológico. Daí o afã com que os últimos cavaquistas têm andado a «recentrar-se». Há nesta religião do «centro» muita ilusão e alguma hipocrisia. Alguém acredita que um Presidente Cavaco dará ao Eng. Sócrates o mesmo conforto de um Presidente Guterres? Por isso mesmo, se o Dr. Cavaco avançar, pode muito bem acabar esta noite doutrinária em que todos os gatos são pardos. Isto, obviamente, caso o plano secreto do Eng. Sócrates não seja pôr a sua maioria à mercê de um Presidente eleito com o apoio dos esfomeados de 20 de Fevereiro.
A vantagem do Dr. Cavaco nas sondagens é, neste momento, bastante grande. A simples força curricular e verbal de candidatos como o Eng. Guterres ou o Dr. Vitorino talvez não chegue para o apanhar. O Eng. Sócrates terá de dramatizar, demonstrando que um Presidente Cavaco será necessariamente incompatível com a actual maioria parlamentar, e portanto um factor de instabilidade. Para isso, pode explorar o que se sabe da psicologia do Dr. Cavaco. O melhor, no entanto, será sujeitá-lo a um confronto esquerda-direita, a fim de derreter a benevolência de que passou a beneficiar à esquerda durante a cruzada nacional contra o Dr. Santana. Tratar o Dr. Cavaco como um cavalo-de-Tróia da instabilidade é obviamente um risco, porque ele pode ganhar. Mas conformar-se com a vitória do Dr. Cavaco, tal como este se conformou com a do Dr. Soares em 1991, pode ser um risco maior. Nem vale a pena recordar a história. Devido às prerrogativas do Presidente, um triunfo do Dr. Cavaco transformará, na prática, a maioria absoluta de 20 de Fevereiro numa maioria relativa. Tudo depende do que o Eng. Sócrates quer: estar no poder, ou estar apenas no governo, sob vigilância e ameaça presidencial. Se lhe convém estar no poder, precisa de um Presidente. E para ter hipóteses de ganhar ao Dr. Cavaco, terá provavelmente de levar o seu candidato a desempenhar o papel do Dr. Soares na segunda volta de 1986: o representante do «povo de esquerda», encarregado de revalidar a primeira maioria absoluta socialista contra a revanche das direitas.
Neste cenário, é verdade que, como notam alguns cavaquistas satisfeitos, as direitas vão ser obrigadas a votar no Dr. Cavaco. Mas é também verdade que o Dr. Cavaco há-de ver-se obrigado pelas esquerdas a ser o candidato das direitas. Como já lhe aconteceu em 1996, e antes dele ao Dr. Freitas em 1986. Em 2006, não haverá «centro», a não ser que um dos dois, o Dr. Cavaco ou o Eng. Sócrates, renuncie previamente à luta. Só neste caso será dado a um deles desfilar com o fingido manto do «centro», como o Dr. Soares em 1991. Porque fundamentalmente o «centro» é apenas isso: uma ilusão de óptica criada pela capacidade de um dos lados para retirar dividendos eleitorais da desmobilização do outro.

Rui Ramos