quinta-feira, março 24, 2005

A ESPERANÇA

Nesta quadra tão propícia a meditações sobre as condições da esperança deparei com um trecho de um escritor que hoje será certamente desconhecido para a generalidade dos leitores de língua portuguesa. O Padre Manuel Bernardes. Durante séculos aclamado como um dos máximos expoentes da nossa língua, o mestre escritor está agora arrumado no imenso rol dos esquecidos.
Ao lembrar Manuel Bernardes recordo sempre Manuel Maria Múrias, que tinha por ele quase veneração e recorria com frequência a essa fonte de inspiração e aperfeiçoamento, no apurar da pena.
Segue-se como já perceberam um excerto do Padre Manuel Bernardes sobre a virtude da Esperança, da sua "Nova Floresta" (não confundir com o blogue homónimo).


A ESPERANÇA
Sejamos alegres pela esperança, sofridos nas tribulações. Porque quem bem espera bem sofre, e quem levanta o espírito aos bens eternos sabe portar-se bem nas misérias temporais.
Sabeis que coisa é a Esperança? Uma engenhosa máquina com que o espírito se guinda desde o mundo para a eternidade; e assim não lhe carrega o peso dos males que cá embaixo leva, porque tanto furta à aflição do trabalho que padece, quanto se levanta à contemplação do descanso que espera.
Raiando o sol, absorve-se o orvalho da fria noite; e aparecendo a esperança, enxugam-se as lágrimas do ânimo desconsolado. Por isso Susana pôs no Céu os olhos, quando cheios de lágrimas, porque do Céu esperava o remédio da aflição presente e a remuneração dos seus castos procedimentos.
Da esmeralda (símbolo da Esperança) escrevem os naturais que tem virtude de desterrar os medos nocturnos e recrear o espírito. E Plínio diz que restaura a vista ofuscada com outro objecto desagradável. Esmeralda dissera eu ser aquela pedra preciosa a que Salomão comparou a Esperança; porque recreia a vista da alma, avocando-a da consideração dos presentes males para a dos bens futuros.
Do peixe asquino diz Santo Ambrósio que, sobrevindo tempestade, se pega fortemente a alguma rocha ou penedo; com que a violência das turbulentas ondas o não pode dali arrancar e envolver entre seus escarcéus altivos e furiosas ressacas. Já que as tribulações são tempestades, e a esperança do eterno é rocha imóvel, abrace-se a alma com esta rocha e vencerá estas tempestades.
A César, ao embarcar-se, resvalando-lhe o pé, caiu em terra; e, para mover o mau agouro que os seus podiam daqui formar, acudiu com presteza, dizendo:
— Teneo te: o Terra mater, teneo te; Pego de ti, ó terra minha mãe, pego de ti, e tomo posse.
Com mais razão pode, e deve-se, qualquer fiel, quando cai em algum infortúnio, levantar a esperança, dizendo:
— Pego de ti, ó Céu, pego de ti, oh Jerusalém Celestial, nossa mãe, e tomo posse.
Pegar-se à terra quando nos acontecem trabalhos, é de infiéis e gentios, que não têm que esperar fora dela; pegar-se ao Céu é de cristãos, que sabem que o padecer é sinal de salvar, e que este agouro é lícito e louvável. O apóstolo São Paulo o louva naqueles fiéis que sofreram com equanimidade a rapina de seus bens temporais, na confiança de que lhes ficavam intactos os eternos.
Certo mendigo havia que, quando já tinha a sacola cheia de esmolas, dizia:
— Agora sim, que confio.
Esta sacola estaria cheia, mas esta alma estava vazia; ajuntara pão, mas não ajuntara virtudes; enchia o ventre, mas jejuava o espírito.
O verdadeiro cristão, quando mais lhe falta, mais deve confiar; porque na falta das criaturas é certo o auxílio do Criador; e quem tem consigo a Deus, que lhe pode faltar?
Não é a esperança em Deus como a esperança no mundo: esta, por sentença divina, traz consigo maldição; aquela, pelo contrário, traz consigo benção: Beati omnes, qui expectant eum. Aquela é sonho de acordados; esta outra é realidade certíssima.
Conta-se, por apólogo, que um lavrador achou, uma manhã, os seus bois mui alegres e brincadores.
— Olá! (disse ele), que têm vocês, que estão contentes?
— Sonhamos (responderam) que esta manhã íamos a uns pastos mui pingues, onde todo o dia andávamos à vontade.
— Pois eu (tornou o lavrador) sonhei que vocês iam lavrar-me tantas geiras.
E, dizendo isto, os meteu no timão do arado.
Quem no mundo espera descanso durável, ou verdadeiro, sonha, e brevemente se acha desenganado, trocando-se-lhe os pastos pingues em duríssimo jugo, e o que imaginava gozo e repouso em dor e trabalho. Porém, quem constitui a sua esperança em bens eternos e na consolação e auxílio divino não se engana. Os seus sonhos são verdade de fé, pois as Escrituras afirmam que a tribulação bem levada gera boa prova, e a boa prova legítima esperança, com a qual ninguém fica envergonhado.
Também é eficaz lenitivo dos trabalhos e penalidades o considerar que passam brevemente. Momentaneum, et leve tribulationis nostræ, disse São Paulo, ajuntando sabiamente o leve da nossa tribulação com o momentâneo dela; porque a brevidade da duração contrapesa o grave da pena: já quando os ombros começam a afligir-se com a carga, a mudança lha tira deles, que é o que disse Cícero, e mais brevemente S. Bernardo: Transit hora, transit et pœna: passa a hora, e passa também a pena. Quem deu asas ao tempo deu também asas ao trabalho; aquelas penas, voando, levaram consigo estas outras, cessando.
Com isto consolava o capitão Eneas aos seus companheiros, aflitos com os trabalhos de navegação tão longa; e outro poeta, espanhol, disse discretamente:
Passan se rios de males
ya sin puente, ya sin barco;
Mas no ay mal en esta vida,
que no se le tope vado.
Livre-nos Deus de rios onde não há ponte, nem barco, nem vau; livre-nos Deus de males onde não há fazer pé, porque a esperança se afoga; e de trabalhos que não têm mais fim que novo princípio, quais são os de um condenado. Os outros, ainda que durem toda a vida, como a vida passa por momentos, por momentos também vão passando. Esta consideração fazia a mãe de São Gregório Nazianzeno, e ele por isso a louva: que nada reputava por grave pena, uma vez que havia de acabar com a vida.
Neste mundo faz Deus dos ímpios vara com que castiga os justos; mas depois chama os justos para o Reino, e lança a vara no fogo...

Pde. Manuel Bernardes