quinta-feira, março 31, 2005

Aproximações

Façam os leitores o exercício de ler com olhos de ler os dois poemas que seguem.
São as almas que se tocam, ou é Deus que a todos fala em cada ausência?

«Senhor!
Por que é que a tua mão me mutilou,
Se não sei quem tu és nem quem eu sou?
Se não sei como obrigar
A minha carne, empréstimo de um deus,
A ajoelhar-se a teus pés e a confessar
Dramas que não são meus?
Se me assombra
A noite, que é uma esfinge preta e nua,
E vejo na minha sombra
Outra esfinge que recua?

Se tenho medo
De passar os umbrais do meu passado,
De prostituir o segredo
Desse palácio queimado?

Se é em vão
Que eu me congelo o sangue em cada veia,
Só para ouvir o coração
Parar na revelação
Da irrevelada Ideia?

Se em minha vida dormem tantas vidas?
Se eu sou o coveiro das minhas esperanças?
Se a minha alma é um cemitério de crianças
Com as cruzes caídas?

Se o coração em dobres augurais,
Anda a chamar por mais?

Se o barco em que subíamos o rio
Se abismou de vazio?

Se não te dói saber que na minha alma aflita
Há uma raíz que grita?

Se este rugido — Mais! — sempre mais forte,
Te cospe infâmias por teres feito a morte?

Se olhando os palcos que o teu nome inspira,
Mordo nos lábios esta voz — Mentira! —?

Se para ver o que não mais desvendo,
Peço ao louco a razão e não entendo?

Se sei a dor que só na dor se acalma,
Que sei de ti, de mim, que sei eu da alma?

Se não sei quem eu sou nem quem tu és,
Como cair-te aos pés? Como cair-te aos pés?

Senhor que eu vi em sonho e em pequenino!
Se enfim no mapa-mundi do destino
por onde, exausto, eu cego a procurar-te
(Anjo ou cordeiro ou pomba ou corpo teu),
Um dia abrir os olhos e encontrar-te,
— Senhor, diz-me: «Sou Eu!»


Os versos que antecedem são de Carlos Cunha, poeta a quem o destino nunca sorriu e que repousa já na sua aldeia sobre o Vez.
Os que se seguem são de Goulart Nogueira, para quem a sorte também sempre foi madrasta, e são assim:

«Meu Deus! Só quando renunciar ao mundo
Abarcarei o mundo.
Sei isto e muitas coisas mais
Que me dizem dos sítios onde vais,
Sei isto e os compêndios de escolar
Que ensinam os caminhos para Te achar.
Sei isto; e inteligência mostra que é.
Só não sei o gosto ao amor. Só não sei a força à fé.

Meu Deus Senhor! Renunciar ao mundo,
Nada querer por Te querer a Ti.
Nessa empresa me gasto e me confundo,
Mas moras muito alto ou muito fundo,
Que sinto o mundo e nunca Te senti.

Ó dono dos exércitos — vencido!,
Inerte, quando a terra me conquista!
Só me chamas nas coisas escondido.
E eu nas coisas me perco, ó som perdido,
Ó eco enganador, ó falsa pista!

Meu Senhor, que encontrei na inteligência
E explicando o insucesso dos meus passos;
Que conheci — de nome — nos regaços
De Mãe, Tias e Avó – com negligência.
Senhor intemporal que não tens pressa,
Que envenenas os sítios onde beijo,
Que me afogas de dor no que desejo,
Meu Deus Senhor! Por onde se começa?»