quinta-feira, fevereiro 24, 2005

UM MESTRE DE PORTUGALIDADE ― AFONSO LOPES VIEIRA

Portugalidade. Belo neologismo, este, bem próprio de quem o inventou, desde cujo nascimento, na portuguesíssima terra de Leiria, se completaram a 26 de Janeiro (de 1978) cem anos certos: Afonso Lopes Vieira.
Português de Leiria, da cidade do Lis herdara, a par do mais estrénuo amor à Pátria Portuguesa, a sensibilidade lírica de Rodrigues Lobo e a vivacidade poética del-rei D. Dinis. E quis o destino que no seu nome se juntassem o do primeiro rei de Portugal ― Afonso ― o apelido do primeiro grande cronista português, Fernão Lopes ― e o do maior dos nossos oradores sagrados ― António Vieira.
Estamos em crer que o Mestre nunca se dera conta desta coincidência singular, de que certamente muito se orgulharia. E lamentamos só termos nós dado por ela alguns anos após a sua morte, num artigo em que evocámos a sua rara personalidade de homem e de poeta, pois essa nossa descoberta lhe causaria grande júbilo, consolidando a amizade com que tanto nos honrou.
Com que saudade recordamos os nossos longos serões na sua bela casa lisboeta do Largo da Rosa (topónimo também predestinado...) e as tardes que passámos no seu terraço de São Pedro de Muel! Quantas vezes trepámos, de braço dado, as escadinhas que sobem da Betesga até à Costa do Castelo, cavaqueando, ouvindo as suas espirituais lições de Portugalidade. E passávamos depois horas e horas (ele adorava a noite, como nós) na sua magnífica biblioteca, conversando de tudo quanto mais estimávamos, das coisas que então supúnhamos indissoluvelmente ligadas para sempre à nossa História, à nossa Arte, à nossa Literatura, ― numa palavra, à nossa Terra de Aquém e Além Mar ― coisas que lhe mereciam todo o seu amor e a que votara toda a sua Obra. Amor que exacerbava o agudíssimo espírito crítico que nessa Obra esplende, implacável com tudo o que pudesse desvirtuá-las na sua natureza original, sustentada pela Tradição, mas às vezes diminuídas, obscurecidas pelos políticos de que era intransigente e vigoroso fustigador.
Generoso na opinião que tinha sobre os seus amigos, não perdoava àqueles que tinha por traidores à causa insigne da Pátria, tratando-os como inimigos seus. Em tudo quanto escrevia, em verso ou prosa, a sua constante preocupação era exaltar os valores que distinguiam Portugal e os Portugueses dignos desse nome, das outras nações do Mundo.
Em Afonso Lopes Vieira havia rasgos de cavaleiro andante e de pastor da Arcádia. Por isso se ocupou em tornar legível e agradável ao seu tempo o "Amadis de Gaula", de Lobeira, e a "Diana", de Montemor. E também o seu carácter tinha aspectos de romântico apaixonado e monge cisterciense, que o levaram a extrair dos túmulos simétricos de Alcobaça a inspiração para o seu "Pedro o Cru", a rever amorosamente (com Charles Oulmont) as "Cartas de Soror Mariana", e a refazer, a bordo dum veleiro, a viagem de Santo António a Ceuta, como experiência indispensável para o livro que sobre o Santo escreveu.
Lopes Vieira exercia a sua alta e límpida missão com a plena consciência e a devoção dum paladino antigo, como dá claro testemunho o título que escolheu para a sua colectânea de artigos e conferências: "Em Demanda do Graal".
Entusiasta de teatro e de cinema, foi ele o promotor da Campanha Vicentina que ressuscitou Mestre Gil para o público de hoje ou pelo menos de ontem, pois não consta que tenha sido reposto em cena de há quatro anos para cá. Acedeu ao nosso pedido de escrever os diálogos do filme "Camões", que nos incitou e animou a produzir, tal como antes fizera para o "Amor de Perdição". Servita de Fátima, também foi ele quem nos convenceu a empreender a produção de um filme sobre as Aparições, filme que uma tristíssima conjura interrompeu a meio, para favorecer a produção de um filme espanhol.
Ele próprio produziu e realizou um filme, o "Afilhado de Santo António", interpretado por crianças, em que o protagonista foi desempenhado pelo menino Luís Forjaz Trigueiros, hoje sócio da Academia das Ciências... O retrato do realizador figura na capa do primeiro número do "Cinéfilo", publicado a 2 de Junho de 1928, o semanário cinematográfico fundado e dirigido por Avelino de Almeida, e editado pela Sociedade de Tipografia, proprietária de "O Século", a que os ignaros sucessores dos capitães de Abril dariam tão inglório e injusto fim.
Demos graças a Deus por Afonso Lopes Vieira não ter atingido em vida o centenário, para não assistir à destruição ignóbil de tudo quanto amou e com tamanho desvelo defendeu. Mestre de Portugalidade, não resistiria à abjecção que nós, que a ela assistimos envergonhados e impotentes, não sabemos sequer como qualificar.

António Lopes Ribeiro
(in A Rua, n.º 87, pág. 16)