segunda-feira, fevereiro 21, 2005

A sombra da vara torta

Qual será o resultado mais significativo destas eleições legislativas? Provavelmente, outras eleições legislativas.
Não duvido que neste mês de Março que aí vem surja novo governo; mas deixem-no atravessar a agitação das autárquicas, lá mais para o fim do ano, e depois as peripécias das presidenciais, no princípio do próximo, tudo de mistura com a habitual turbulência intestina, e veremos como a criança se apresenta daqui a um ano. Nem seria preciso o confronto com as múltiplas facturas que terá que enfrentar (a vitória paga-se). Nem será necessário o desgaste de mais algum referendo, dos prometidos a vários sectores. Estou em crer que na entrada da Primavera de 2006 já o ora nascituro dará sinais visíveis de senilidade. E terá então que submeter-se ao olhar zeloso do novo Presidente que nessa altura tiver sido eleito.
Triste ironia para culminar um processo nascido sob a proclamação enfática da procura da estabilidade. Com efeito, a acreditar no Sr. Presidente da República, era esta faltosa que estava a prostrar o país de rastos. Era a demanda dela que lhe tirava o sono, e foi em nome dela que angustiadamente se prestou ele ao grande sacrifício de decidir.
Se esta foi a motivação, bem pode o Venerando Chefe de Estado limpar as mãos à parede. A decisão de dissolver a assembleia deu causa à polémica que se viu, e que está aí para ficar (o precedente de usar a dissolução como meio para afastar um governo que ali dispõe de maioria ficará para sempre a atormentar a cabeça de constitucionalistas e políticos, sobretudo os encarregados de formar governo). E é notório que essa intervenção não aparenta para já ter conduzido ou poder conduzir à almejada estabilidade.
Porém, e curiosamente, após ter desencadeado a borrasca o Sr. Presidente tem dado um efectivo contributo para essa estabilidade: tem estado calado.
Esta circunstância também devia ser tema de meditação e análise para comentaristas, políticos, politólogos, constitucionalistas e outros académicos e doutores. Com efeito, não estamos perante caso raro, ou sequer em face de alguma novidade. Ao contrário, se lembrarmos a história facilmente verificamos que desde sempre - com Eanes, com Soares, com Sampaio – foi o mesmo que aconteceu. Se o presidente está caladinho o país agradece e o povinho retribui-lhe com os mais elevados índices de popularidade. As instituições até parece que funcionam menos mal. Se o presidente resolve ter ideias, projectos e iniciativas a nação agita-se e desorganiza-se em insolúveis conflitos de poder. Um discurso pode ser um vendaval.
Os ensinamentos acumulados deviam já ter conduzido a uma conclusão. Não digo que se estatuísse definitivamente que o presidente é tanto melhor quanto menos existir, mas ao menos que se examinasse com a devida atenção a articulação entre os diversos órgãos tal como resulta da Constituição vigente, mesmo após todas as revisões efectuadas.
Se um governo tem que responder politicamente tanto perante a assembleia como perante o presidente, que frequentemente são emanações de legitimidades diferentes e opostas, então não há governo que resista.
O executivo será sempre uma zona de crispação na guerra de influências dessas legitimidades em conflito.
A figura e os poderes do Presidente, tal como estão e têm sido definidos pela prática do regime, a partir da sua própria legitimidade, potencialmente conflituante com a da Assembleia, do Governo, e dos partidos que integram estes órgãos, assumem cada vez mais contornos ameaçadores para qualquer projecto de estabilidade política e governativa. O Presidente ou está quieto, calado e virado para a frente, resignando-se à inexistência política, ou, se pensa e fala, desestabiliza.
Não reconhecendo as disfuncionalidades do sistema instalado, desconfio eu que o país político continuará ocupado a procurar soluções impossíveis de encontrar, centrando as atenções nesta ou naquela manifestação visível do problema e esquecendo onde este se encontra.
Como quem se dedica a endireitar a sombra de uma vara torta.