segunda-feira, novembro 29, 2004

O REINO E BUTTIGLIONE

Uma das referências-chave no estudo da mutação cultural na história da humanidade é o versículo 20 do capítulo 13 do Evangelho de S. Lucas, o qual diz: “A que compararei o Reino de Deus? É como o fermento que a mulher põe em três medidas de farinha e leveda toda a massa”. Talvez em toda a memória colectiva nenhuma outra frase tenha tido maior repercussão do que esta em que Jesus Cristo levanta o véu sobre um aspecto essencial do anúncio do seu reino, isto é, a aspiração católica.
A diferença capital para a interpretação da cultura cristã, que é ao mesmo tempo o que a distingue da cultura judaica, está na sua missão universal. O judaísmo gira à volta do fundamento da exclusão, e por isso a cultura judaica é sectária. A lei judaica era uma lei para os judeus, e o judeu aspirava e desejava poder reger-se pela sua lei no seio de outra cultura com excepcionalidade reconhecida. Mesmo nos nossos dias a cultura judaica tem traços de cultura de gueto, de separação, de mundo à parte. O cristianismo está bem distanciado desta tradição, deu corpo a outra que tem como sinal de identificação precisamente o contrário: a aspiração de dar a identidade cristã a toda a humanidade. É o que significa o vocábulo católico.
A missão do católico é a de fermentar o mundo. Para isso aí está a Igreja. A sua razão de ser não é satisfazer os pedidos de conforto espiritual que os fiéis possam apresentar, o que a transformaria, mais do que numa empresa de serviços especial, num verdadeiro marco da cultura consumista. Não, a missão da Igreja é de índole civilizadora e cultural: transformar o mundo prégando o Evangelho.
Não deixa por isso de chamar a atenção que, actualmente, haja alguns católicos que desejem, ou implicitamente trabalhem para a edificação de um gueto cristão no seio de uma sociedade de cultura neopagã. São cristãos que querem para os seus filhos a segurança da fé verdadeira e a procuram em colégios separados, ou que aspiram a que as leis reconheçam a sua excepcionalidade no que se refere ao matrimónio e à família, e que ao mesmo tempo, talvez por isso mesmo, perderam a esperança de fazer do conjunto uma massa levedada pela fé em Cristo.
Buttiglione não pertence a estes católicos com problemas de identidade. Provavelmente foi por isso que o Parlamento Europeu o escorraçou. Porque aqui há algo mais do que política: trata-se de um posicionamento cultural explícito que pretende reduzir o cristianismo à marginalidade. Mas isto é coisa muito distinta do Reino de Cristo. João Paulo II, faz agora um ano, propôs aos cristãos os cinco mistérios da Luz e entre eles, “o anúncio do Reino”. Este afirma a aspiração do universalismo católico e é um mandato evangélico.
Haverá alguns católicos vendo o caso de Buttiglione como uma amarra para a política católica. Um fiel vê precisamente o contrário: esta é a hora de deixarmos aos políticos todo o poder e, em concreto, a sua capacidade de manipularem a cultura. Por esta razão, entre muitas outras como a de saber que a cultura cristã é também a melhor para os cristãos, votarei NÃO à Constituição Europeia que se anuncia para referendo.
José Perez Adán
(Professor de Sociologia na Universidade de Valência /Espanha)