quinta-feira, novembro 25, 2004

ANTÓNIO SARDINHA E OS QUE VIERAM DEPOIS

Recordando Múrias pai, e a sua devoção a António Sardinha, leia-se agora um outro artigo sobre o mesmo tema.

ANTÓNIO SARDINHA E OS QUE VIERAM DEPOIS
Quando António Sardinha morreu ia fazer 37 anos. Tão moço ainda, legava-nos, porém, no seu espólio literário, cinco volumes de versos publicados e material para mais quatro; cinco livros de ensaios de História e Crítica também publicados e revistos (e alguns tão complexos e extensos como Valor da Raça, o prefácio à segunda edição da Teoria das Côrtes Gerais do Visconde de Santarém, e a Aliança Peninsular) e o material disperso por jornais, revistas e outras publicações, que deram ou darão, à vontade, onze ou doze volumes.
Falaremos, primeiro, dos ensaios, — para os explicar; quer dizer: — para lhes fixar o sentido geral apesar da diversidade dos temas.
...Não lhes chamámos nós nem lhes chamou António Sardinha — ensaios, — porque se trate do género literário relativamente moderno, em que se versa um tema já de si limitado ou propositadamente circunscrito e que o autor não pensa em desenvolver ou integrar em obra de maior tomo: — trabalhos que não são, em si, verdadeiros ensaios de outras obras maiores.
Os estudos de António Sardinha foram quase sempre verdadeiros ensaios, — isto é, estudos preparatórios, principalmente de duas obras em que pensou nos últimos anos de vida: — a História de Portugal e a História da Sensibilidade Portuguesa.
Reuniria na primeira destas obras as conclusões novas, todas as erratas à História de Portugal em que assentara no decorrer dos seus estudos e de que nos deixou sinal nos seus ensaios de carácter histórico; na segunda, procuraria em primeiro lugar pôr a lume as características fundamentais da sensibilidade portuguesa, como se manifesta na Literatura, na Arte, na Cultura e até nas ideias políticas e na Cultura através da História, e sublinhar a sua influência tantas vezes inesperada, e deformada, nas Ideias, na Arte e nas Literaturas estrangeiras.
Quando a morte o surpreendeu (e nunca este verbo para casos idênticos se pode usar com maior propriedade!), António Sardinha completava as suas notas de pormenor para a História de Portugal, preparando ensaios sobre a expansão ultramarina, especialmente. Se chegasse a escrevê-los, poder-se-ia organizar hoje, a bem dizer, uma História de Portugal com trechos das suas obras, sem que se lhe pudessem notar grandes falhas essenciais.
...Porque, realmente, poucos homens, se algum houve, na sua geração, escreveram tanto, com tão sôfrega ansiedade de concluir, como António Sardinha. Dir-se-ia recear que lhe faltasse, por fim, a Vida... (Dir-se-ia, que adivinhava!)
E, contudo, António Sardinha não era espicaçado por necessidades de ordem material. Não estudava e escrevia para viver... Vivia para estudar e escrever! E para reconduzir a Nação, pela sua Juventude, à compreensão da sua missão histórica...
Satisfazia sua vocação e o gosto da companheira amantíssima, devotadíssima, que a Providência lhe destinara na Vida, — e foi a inspiradora dos seus entusiasmos, a fada benéfica que deliberadamente escolhera para si o papel de Marta (como Sardinha gostava de dizer) guardando para o Esposo o papel de Maria...
Repare-se que António Sardinha conhecia muito bem os riscos a que se sujeitava com a publicação dos seus ensaios, que outros guardariam ciosamente em esboços à espera de tempo para fazer a obra definitiva. Conhecia-o tão bem, que ao falar com os amigos e discípulos costumava chamar-lhes antes — as suas sebentas, retomando para o seu preceptorado pessoal a velha palavra coimbrã.
Riscos de toda a ordem... Até o da variabilidade do mérito intrínseco dos estudos, dada a quase precipitação com que escrevia. Até o de, às vezes, ter de sujeitar-se às imposições da oportunidade, podendo concluir-se a impressão de que se deixava levar a confusões de valores na ordem das ideias como na dos factos.
Sardinha compreendera, porém que muitos rapazes por esse País fora viviam as mesmas inquietações de espírito e tinham as mesmas dúvidas — que ele próprio ia procurando resolver para si e para os outros. (A evolução de Sardinha corresponde, por isso, à evolução do País, para o reencontro de si próprio...)
...Nunca um homem se inclinara com ternura semelhante para os rapazes cheios de ansiedades. Nunca houve maior animador, mais disposto a levantar para si a juventude, a guiá-la, incitando-a ao estudo, ao trabalho constante, pondo à sua disposição os seus livros, as suas notas, as suas ideias, — com tal desinteresse, com tais extremos de amizade e de esperança, que, ao lembrá-lo agora, quem o conheceu, mal o poderá fazer sem lágrimas nos olhos.
Eu descobri um dia a razão dessa ternura de Sardinha pelos rapazes desamparados de tudo, — somente ricos, em regra, de aspirações ou de possibilidades, que a dureza da vida poderia afogar... — e que, tendo-o ouvido, logo o seguiam com dedicação e entusiasmo: — eu o descobri ao perceber que ele diluía por nós as esperanças que perdera com o filho, que Deus lhe dera e lhe levou menino.
Ninguém jamais esperou um Filho como mais viva, mais fervorosa, (diremos) mais piedosa ansiedade: e o recebeu com mais íntima convicção de que lhe fora dado como benção do Senhor ao Lar Cristianíssimo, que formara. António Sardinha sabia que o homem só vive verdadeiramente quando, cumprindo o preceito de Deus, se prolonga... Ele esperava um Filho e desejava-o como garantia de permanência para si e para os seus mortos, — para o sangue que lhe veio às veias através dos séculos...
Por isso logo então, ao nascer Lopo, seu filho único, escrevia no admirável poema do Cântico de Sangue:

Floriu a árvore! Louvado seja
o Senhor Deus na Sua Imensidade
mais vil de que o pó do chão, oh, quem não há-de
louvar a Mão suprema e benfazeja,
da Qual é filha a própria Eternidade!
.........................................................

Louvado sejas tu que deste à minha Raça
Com mil promessas um rebento forte,
Que me tocaste com o teu sinal!
Por ti, Senhor, eu triunfei da morte,
não se extinguiu em mim o espírito ancestral.

Defuntos que jazeis em cinza e nada,
avós desfeitos em poeira fria,
vinde, acordai na cova
dentre essa sonolência enregelada!
Deus concedeu-vos um terceiro dia,
que a Árvore floriu, — louvado seja Deus! —
e em dons de maravilha se renova
p`ra duração dos Meus!


Recordam-se de que precisamente este poema era consagrado: — «Aos que depois de mim vieram»? E quem mais profundamente compreendeu algum dia o valor transcendente do mistério do Espírito que se prolonga no Sangue do passado, pelo homem que vive e luta e sofre, para o futuro?
Todavia, a formação cristã de António Sardinha não o deixava iludir-se, — e sob este aspecto, a Toada do Menino, um dos mais enternecidos poemas líricos da língua portuguesa, é incomparavelmente expressivo. O Pai, no entusiasmo de se ver prolongado, podia escrever:

Nasceram dois dias juntos,
nunca se viu coisa assim!
Nasceu um dia para o mundo,
nasceu outro p`ra mim!


Logo, porém, acrescentava:

Nasceste em roupas de preço,
— onde é que irás acabar?
Eu peço a Deus que te leve
se te não há de guardar!


...E agora se compreende a angústia de Sardinha, quando o Menino morria! Angústia de quem, de certa forma, se sentia mutilado no seu destino...

Por ti o osso sangue foi liberto
desse pavor de não me tornar a ser!
Mas quando eu via em ti um fruto certo,
quis-te o Senhor por Suas Mãos colher!

Hoje sem ti não sei se Deus me empraza
a ser eu próprio o ramo derradeiro
da árvore ancestral a que presido...


Era a limitação! E contudo não desespera... Mas quem pode apagar a dor do Pai que perdeu o filho? Se foi o filho único da casa!

O nosso sangue é antigo,
são bem antigos os meus.
Por isso louvo e bendigo
o santo nome de Deus!

Vivendo sempre do trigo
tivemos gado e lebreus.
Oh! Se te visse comigo,
a quem sairias dos teus?

Com um poder que não passa,
tu deste a prova da raça,
quando te foste do mundo!

Ó neto de lavradores,
na sementeira das dores
deitaste o rego bem fundo!


Pouco a pouco, o amor e a saudade se alargam em ternura às criancinhas... A própria dor se alarga a novas esperanças, a renovadas alegrias:

Andam crianças na rua,
— filhos dos outros, que pena!
E a minha dor continua,
mas continua serena.

Cada casal leva a sua.
(Seja o que Deus nos ordena!)
Andam crianças na rua,
— muita criança, que pena!...

Por entre vidas tão mansas,
neste caminho que eu trilho,
as mágoas medem-se a rodos!

Sorrio a essas crianças,
porque o amor do meu filho,
abrange os filhos de todos!


Não parece que pouco a pouco as esperanças que o filho lhe suscitara na alma, se vão transportando para os filhos dos outros, — como quem busca um prolongamento do Espírito mesmo que se não faça pelo próprio sangue renovado?...
Pensava, fundindo a esperança com a saudade:

Seria um moço trigueiro,
de grandes coisas capaz,
se o não levasse primeiro
quem tudo faz e desfaz!

Punha-se, a rir, prazenteiro,
mostrava um ar de rapaz
quando passava o leiteiro,
com as vaquinhas atrás.

Era a costela rural
de que nasceu Portugal
por obra e graça de Deus!

Em toda aquela alegria
via-se que ele saía
ao sangue honrado dos seus!


Esta transposição da Esperança, alargando-se do sangue herdado às gerações que iam surgindo (que ele ia vendo surgir...), explica, se me não engano, o afecto enternecido de António Sardinha pelos rapazes do seu tempo.
E explica certas afeições transitórias da sua obra...
Ele foi o precursor, — ele próprio quis ser o precursor, — duma Ordem moral e espiritual renovada. Via nos seus discípulos os continuadores do ímpeto transfigurador para a arrancada em que se empenhou...
Mas por isso mesmo é maior a nossa responsabilidade. Não começámos, — prosseguimos a longa, dolorosa, mas, simultaneamente, arrebatadora caminhada que Sardinha nos apontou. E não somos poucos os que, nas horas mais angustiosas em que é preciso decidir, perguntam de si para consigo, com quem vai continuando o diálogo patético que a morte, há dezoito anos, interrompeu:
— Seria assim?....
Acreditamos sim, — acreditamos que seria assim também com ele.
Manuel Múrias
In «Fradique», n.º 143, págs. 1/7,13.01.1944.