quinta-feira, novembro 25, 2004

ADIANTE!

Mais esquecido ainda do que Manuel Maria está seu pai, o grande jornalista e homem de cultura que foi Manuel Múrias. Para amostra aqui fica um velho artigo onde ele dava conta da sua admiração por António Sardinha. Recordemos então o poeta de Monforte, através do estilo inspirado de Manuel Múrias, em palavras dadas às novas gerações.

ADIANTE!
Quando António Sardinha morreu tinha 37 anos — ia principiar a sua obra. (Não penso agora no Poeta...).
Preparava-se febrilmente para a História de Portugal, de que chegou a traçar o plano, e para a História da Sensibilidade Portuguesa; mas nem de um nem de outro escreveu sequer a primeira página. O que nos ficou e nós consideramos a sua obra são os apontamentos, as meditações, — ensaios, verdadeiramente, no exacto sentido desta palavra. Por isso chamava aos seus estudos — «as minhas sebentas».
Quem não souber isto não percebe nada de António Sardinha.
Passou anos a esquecer o que lhe tinham ensinado, como quem cura as cicatrizes de combates inúteis... Sentia dolorosamente o peso da cultura morta (não cultura), que lhe haviam imposto nas escolas sem alma. E desatou a buscar por outros caminhos, que ninguém sabia, a sua própria salvação.
Simplesmente, em vez de se encerrar no seu gabinete, acumulando notas e observações, desatento à vida que passa, egoísta e frio, António Sardinha resolveu salvar consigo as novas gerações, que surgiam entontecidas, desalentadas e tristes, sem rumo e sem esperança. E por isso ia lançando nos seus ensaios, não apenas as conclusões do seu próprio esforço resgatador — mas também as marcas da sua avançada em procurada da Verdade.
Eis porque a transformação de António Sardinha, que outro qualquer guardaria para si até que amadurecesse em frutos louros e sumarentos, ele a divulgava e proclamava para que todos aproveitassem do seu próprio sacrifício, e pôde corresponder à transformação moral e espiritual da sua época neste País.
Foi melhor assim! O seu esforço, o seu pensamento, o seu entusiasmo não ficaram enterrados com ele no cemitério de Monforte, — para onde o levámos numa romagem espantosa desde Elvas... Desciam os camponeses à estrada, a chorar e a rezar. Dobravam a finados todos os sinos das igrejinhas do percurso infindável. Os homens, que haviam sido os meeiros dos seus brinquedos infantis, saltaram ao caminho, levaram nos ombros a enterrar o corpo do companheiro morto...
E toda a gente (senhores, até os que o não conheciam!) tiveram a impressão de que alguma coisa de essencial se quebrava em Portugal.
No Brasil, Jackson de Figueiredo, que para tantos brasileiros fora o que nos havia sido António Sardinha, — escrevia ansioso:
— Que será de Portugal sem António Sardinha?...
E Afonso Lopes Vieira, com a trágica serenidade habitual dos seus conceitos, escreveria depois que, sem António Sardinha — Portugal ficou mais pobre.
Mas agora já se pode ver que não era assim. A confusão proveio de se ter julgado que a acção transfiguradora de António Sardinha terminara com a sua morte — de se ter esquecido que ele considerava a Morte a verdadeira Vida. A dúvida provinha de se não reparar que o pensamento de António Sardinha andava já então, vivo e seguro, no coração e no espírito melhor da gente nova.
Precisamente, porque António Sardinha preparava a sua obra mas não chegara a realizá-la, não era um círculo fechado ou um colete de forças — havia de ser antes, como foi, uma sementeira imensa, que o semeador não poderia ceifar, mas que outros, entretanto, poderiam tratar e defender. Uns guardariam a seara, com efeito — outros enceleirariam os grãos. Mas foi António Sardinha quem lavrou a terra e com o gesto largo lançou a semente ao longe...
E isto foi o que se não viu imediatamente. Nós mesmos, os que tínhamos a consciência de nos termos salvo por António Sardinha, sentíamo-nos desamparados e sós, sem o mestre, o guia, o animador... Sabia-se que não teríamos sido o que éramos se António Sardinha não tivesse aparecido no caminho, que seguíamos, a lidar o seu combate; e pensámos um momento que tudo se perdera, afinal...
Mas a semente lançada à terra não se perdeu entre fragas e António Sardinha, pelo que iniciara e não completou, continuaria vivo entre nós. Continuaria em nós o seu esforço resgatador...
Ele teve ainda vida para reconhecer as condições do triunfo — proclamando já a nossa vitória nos domínios augustos do Espírito. Agora, porém, será preciso ir mais longe... Será preciso guardar dos interesses, que entre nós se insinuam, a lareira acesa pela antecipação genial de António Sardinha. Será preciso fazer como se António Sardinha vivesse, não lhe tomar os conceitos como conclusões mas como princípios: — o perceber que principiámos com António Sardinha em lugar de pensarmos que nele se lançaram as fronteiras limites das nossas aspirações.
Ir adiante, sempre. Saltar, sem hesitações, por sobre os cadáveres, que dançam entre os vivos os bailados macabros dos autómatos seguidores dos mesmos ritmos — sempre os mesmos ritmos, baloiçados e tontos, monótonos, que aprenderam um dia e não são capazes de esquecer!
Estar com António Sardinha, tê-lo entre nós, não é ficar, inerte, em 1925, é recolher-lhe a herança e continuar-lha... É ser o que ele sempre quis que fossemos — Gente viva e forte, capaz de erguer e levantar alto, mais alto sempre, a bandeira que a morte fez inclinar, mas não cair.

Manuel Múrias
(In «Gil Vicente», Vol. XXIII, nº 1/2, Janeiro/Fevereiro de 1947, págs. 5/6/7)