segunda-feira, outubro 11, 2004

O tempo que passou

Mal tinha eu publicado o postal anterior, e chegou lá do Canadá, por prodígios da net, a resposta de Fernanda Leitão. Um pouco coradinho, aqui a deixo à degustação de todos os que me acompanham nesta tertúlia.

O TEMPO PASSOU

O Manuel brindou-nos hoje com um comentário magnífico, e triste, acerca da decadência, em toda a linha, dessa gente da "pulhítica". E tem toda a razão para estar triste e inquieto. Ainda há 30 anos atrás tínhamos, à direita e à esquerda, gente com gabarito e linha, com competência e presença, que sabia estar. Agora, é o que se vê. Estes é que tinham estado bem para o MFA, que era uma tropa arrafeirada e sem maneiras, e se assim tivesse sido, a coisa tinha rebentado há que tempos. Mas foram outros, que se foram queimando nesta fogueira sem sentido.
Pensando melhor, esta degenerescência vem-se verificando desde o termo da 2ª Guerra Mundial, e à roda do mundo. Nessa altura ainda havia políticos que, embora controversos na paz, foram grandes na guerra, como um Churchill e um de Gaulle. A pouco e pouco, com o advento do hamburger e da sapatilha, da TV e dos jornais tablóides, a qualidade diluíu-se, até ficar este caldo nojento. Não é só em Portugal que o pessoal activo da política é uma escória, um pouco por toda a parte reina a mesma mediocridade.
Mas hoje é domingo, por aqui está um dia esplendoroso, quentinho, de belíssimas cores outonais, a missa donde venho, em Our Lady of Lourdes, foi celebrada pelos jesuítas da congregação sobre um altar que tinha a seus pés um deslumbramento de flores, ramos de árvores, cestas de frutos, cestas de abóboras muito amarelinhas. Porque, neste fim de semana, o Canadá celebra, com alegria e rigor, o Dia de Acção de Graças. As famílias vão de manhã aos cemitérios, depois aos serviços religiosos da sua fé, visitam-se amigos doentes e, finalmente, as famílias reunem-se num jantar de perú recheado, acompanhado de toda a sorte de vegetais e molho de cranberry, regado pelo vinho canadiano, que não envergonha ninguém e está um homenzinho, terminado com a tradicional sobremesa de tarte de maçã ou de abóbora com sorvete.
Este povo agradece sinceramente o que Deus lhe deu no correr do ano. É, por isso, um dia de alegria.
Sendo de alegria, e tendo o Manuel falado da Beatriz Costa, eu tomo a liberdade de lembrar para vós umas quantas facécias para nos rirmos todos.
A Beatriz Costa e eu dávamo-nos bem, ela tratava-me por tu. Encontrávamo-nos volta e meia à mesa de almoço no Chico Carreira, do Parque Mayer, um homenzarrão sempre de curto sevilhano e chapéu à Mazantini, que era sócio garatido da actriz nas corridas de touros em Portugal e Espanha. O Chico Carreira tinha um carão, mas era a bondade em pessoa. Sonhasse ele jornalista desempregado que logo o "mandava" comer lá em casa, de borla.Os nossos almoços eram de farra por causa da Beatriz, que dizia coisas gozadíssimas. Quando eu almoçava só com o Chico, era um sossego.
Outras vezes ia eu ao átrio do Hotel Tivoli, ao fim da tarde, pedir-lhe duas ou três anedotas novas por nessa noite ir ao Faia com rapaziada e encontrar lá a fadista Maria Albertina que nos achatava sempre com anedotas engraçadíssimas. A Beatriz despejava as últimas aquisições, a recomendar-me "agora vê lá se te esqueces e trocas tudo", e eu lá ia fazendo uns brilharetes.
Outras vezes eu ia com a Beatriz Costa até ao Solar da Herminia, ao Bairro Alto, ali jantávamos e tínhamos um serão de conversa. A Herminia Silva, que na revista era de mão à ilharga a dizer "ó pá, tou à rasca", ali em casa era a linha e o aprumo em pessoa, sabia receber e não raro mandava calar a Beatriz Costa que, quando se descomandava, era um tanto desbocada. Às vezes eu ia ás matinées do Tivoli com a Teresa Tarouca, encontrávamos lá a Herminia Silva e ela fazia sempre questão de nos pagar a bica. Uma noite fomos à casa de fados da Herminia levar-lhe uma prenda que deixou a fadista sem fala e à beira das lágrimas: a Teresa ofereceu-lhe um xaile de merino que tinha sido de uma remota avó da nobre linhagem dos Taroucas. Foi nessa noite que, em amena cavaqueira, a Herminia Silva nos contou que. quando ela e a Beatriz Costa entraram no filme Aldeia da Roupa Branca, foram postas a dieta pelo realizador. É que, sendo mais difíceis de ultrapassar as distâncias naquele tempo de más estradas e poucos carros, actores e restante pessoal das filmagens estavam aboletados numa pensão da Malveira, a Ti Jaquina dos Cabritos, onde aqueles pilantras de Lisboa, depois de horas a filmar na serra, com bons ares, devoravam a riquíssima comida que a patroa lhes servia. "As meninas nem calculam! Quando o realizador nos chamou à ordem, a Beatriz e eu estávamos reboludas como borregas", contou-nos a Herminia.
Quando tomei conta do Templário, para tratar dos comunas a quem eu não queria que faltasse nada, a primeira carta que recebi em Tomar foi da pintora Estrela Faria: "Vai em frente sem medo que se "eles" te cortarem a cabeça, eu colo-ta. Eu, cá por Lisboa, vou aguentando isto com umas garrafas de Borba e uns restos de amigos que ainda não fugiram". Mas também a Beatriz Costa, que viveu em Tomar em garotinha e de quem a minha gente se lembrava bem, apareceu a dar um empurrão.
Quando o Templário abriu escritório em Lisboa, na Rua Rodrigues Sampaio, ali mesmo em frente do Hotel Tivoli, era só atravessar a Avenida da Liberdade, a Beatriz ficou num sino. Aparecia constantemente na redacção, a rapaziada morria por ela porque, já se sabe, ela estava sempre de cara na água. Era ela e as meninas da Covina, em frente do jornal, a quem os meus rapazes mandavam enfiadas de balões coloridos dum lado para o outro quando eu não estava por perto. Quando calhei de ver o espectáculo e ia abrir a boca, diz-me um colaborador, o Mário, que era descarado e tinha piada: "Conforma-te! Sabes bem que isto não é um jornal, é uma casa de artistas". Era capaz de ser. Fiz de conta que nem tinha reparado. Mas a Beatriz era ali presença assídua.
E eu, em dias de muita pressão, de muito desgosto, de muito conselho da revolução que o diabo sumisse nos infernos, ia até ao hotel rir-me com ela a ver se a nuvem passava e eu aguentava. Foi num desses princípios de noite que, saíndo do hotel devagarinho para irmos jantar ao Parque Mayer, demos de caras com um senhor alto, de bastante idade, vestido de cores claras, todo ele um brazileiro contado pelo Camilo. Especou-se diante da actriz, risonho, de olhos muito deslumbrados, e diz-lhe: "Ah, é a Sra. Da. Beatriz Costa! Estou tão contente por poder vê-la... E que bem que a Sra. parece! Com quantos é que a Sra. está agora?". E a atrevida, sem caridade nenhuma, todo o Parque Mayer e a Malveira a correrem-lhe nas veias, disse só este mimo: "Eu agora não estou com nenhum". O sr. ficou petrificado, eu até julguei que lhe ia dar uma coisa má, e levou tempo a recompor-se, mas por fim lá riram os dois a bom rir. Era assim a vedeta.
Quando publicou o seu primeiro livro, SEM PAPAS NA LÍNGUA, foi-me levar um exemplar ao jornal e de caminho, participou-me que ia ao Brasil por uma temporada mas que também tinha deixado um livro à Bia (Hermínia Silva). E estava queixosa. "Então não queres crer, aquela bruta a perguntar-me se realmente eu é que escrevi o livro? E depois a dizer, deixa aí, tá bem, não me chateies, eu hei-de ler isso".
O pior foi quando a Beatriz regressou daquela costumada peregrinação entre o Rio de Janeiro e a casa do compadre Jorge Amado. Entrou-me pela porta dentro numa fúria. Vinha de casa da Herminia. Queria eu saber o que se passou? Pois ali estava: a Bia não leu o livro. Honesta, explicou porquê: "É munto grande! E depois tu disseste-me que falavas ali da gente, do nosso tempo, e eu sei isso tudo de cor". Estava fora de si a glória do Parque Mayer. E eu, com cara de tacho, perdida de riso, porque achei pilhas à outra.
Enfim, gente que fez um tempo, que fez uma época. O tempo passou.

Fernanda Leitão