terça-feira, outubro 05, 2004

Não pagamos, não pagamos!

Nesta apatia modorrenta em que o país flutua, nenhuma palavra de ordem rivaliza em poder mobilizador com o célebre "não pagamos, não pagamos".
Não se pense que é fenómeno restrito às hordas universitárias, que ouvindo falar em pagar pelo serviço que as privilegia acordam estremunhadas do cansaço das noitadas e da ressaca cervejeira e desatam a berrar desalmadamente "não pagamos, não pagamos", em simiescas exibições de rua.
Não há tal restrição: trata-se de uma mentalidade expandida e generalizada, profundamente enraízada nas entranhas da populaça. O "não pagamos, não pagamos" corresponde a uma aspiração e um impulso marcados a fogo no ser do tempo.
Que qualquer realidade que tenha um custo tem necessariamente um preço, e que se o não pagarem uns outros o pagarão, tornou-se uma ideia obscena repudiada com geral repulsa.
Todos querem ter tudo, ninguém quer pagar nada.
Os políticos já descobriram isso. Nesse universo vazio de qualquer ideia ou projecto que não seja o poder pelo poder, constatou-se a óbvia impossibilidade de interessar as massas por uma ideal ou fazê-las mexer por uma bandeira acenadas em chamadouro. Um grande bocejo colectivo responde sempre a essas representações em falsete, de papéis em que os próprios actores não acreditam.
Desta forma o "não pagamos, não pagamos" transforma-se numa fórmula mágica. Pode não haver mais nada, mas por aí se chega ao coração das gentes, assim se conseguem multidões e indignações, a dosezinha de dramatização que é condimento necessário à actividade política.
Consequentemente, a tendência é para se multiplicarem como fogos no Verão os focos de luta (justas lutas, claro) despoletadas pelo "não pagamos, não pagamos".
Fale-se em revisão das leis do arrendamento, e já se ensaia o coro das indignações, em defesa do que está: não pagamos, não pagamos. Terá um enorme sucesso, esta justa luta, tantos são os interesses concentrados no imobilismo, desde a construção civil aos bancos, ou aos grandes escritórios dos profissionais liberais instalados há décadas em locais onde pagam dez contos pelo todo e cobram cento e cinquenta pela cedência de cada uma das onze ou doze assoalhadas (profissionais estes maioritários na assembleia e nos directórios partidários, evidentemente).
Fala-se em pagar nas auto-estradas, e é como dar um pontapé num formigueiro, tal a agitação. Desde os autarcas que nem tapam os buracos nas ruas e caminhos que lhes estão entregues até aos populares que obviamente preferem que seja pago por outros aquilo que eles usam e gostam de usar já vai por aí uma choradeira inextinguível.
Tente falar-se em acualizar as portagens na ponte que já deitou abaixo governos e primeiros-ministros, e logo se verá o escarcéu que se levanta.
Feitas as contas aos votos, é provável que quem está no governo entenda que é preferível continuar a suportar os custos de todas as extravagâncias citadas e muitas outras não citadas, se a alternativa for perder as eleições. E tudo ficará na mesma.
A oposição não dorme: o "não pagamos, não pagamos" é que está a dar, e assim continuará a ser nos tempos próximos.
Pogramas e projectos de governação são aborrecidos, e na verdade ninguém lê nem quer ouvir falar disso.
O que cai bem é o "universal e gratuito", e não só para o ensino superior como querem os patuscos que deviam saber medir o que estão a dizer. Tudo universal e gratuito é que é. Vamos a votos?