segunda-feira, setembro 20, 2004

ENIGMA, SER E VERDADE

Que é o homem? Um ser de enigma situado no real, esse "misto da cisão pelo qual nem o que é, é, nem o que não é, não é, nem a verdade pode assegurar-se, nem o pensamento consistir na não-verdade". Ser de enigma, em real enigmático, o homem é o filósofo. Se Unamuno pudera afirmar que só o homem é filósofo, José Marinho tivera então a nunca infundada garantia de responder, como de viva voz respondeu a Unamuno, que só o filósofo é homem. A filosofia, portanto, é entendida senão como o sinónimo operativo do ser humano em sua incisa individualidade, pelo menos como a interrogativa alma do homem: a filosofia é toda a interrogação enigmática do enigma, interrogação feita pelo homem a uma autoridade que, respondente, permanece surda e indiferente, como o Rochedo bíblico, ou como o firme firmamento que, impassível, é o único que se move. Filosofar é iniciar, trazer para dentro de, e, noutra instância, criar no homem o saber do homem acerca de si mesmo como homem e, dele, enquanto outro, que não homem, é possível de ser. Então, filosofia "é toda a iniciática, vive enquanto a pensamos, fecunda para aqueles a quem é dado repensá-la, sempre no entanto cingida, enquanto a exprimimos, de finitude, sempre tocada de caducidade". Eis o homem - ora infinito e eterno; embora, finito e caduco. A filosofia é a medida pela qual importa medir o homem e onde o homem mede, pesa e conta o que mais importa.
Antropologia extrema, humanismo idolátrico? Não, mas todo o contrário disso. Filosofia que não seja apenas filosofia, isente de toda a mácula de saber alterado, não é filosofia. Todas as ciências podem redimir-se pela filosofia; só a filosofia se redime por si mesma; melhor - todas as espécies do ser se redimem pelo homem, mas só o homem se redimirá por si mesmo, ainda quando o juiz da remissão seja outro, que não o homem.
Como entender essa acerada dificuldade? Quando medita o que surge como o que cria, ou que é anterior a toda a criação, o homem salta para além de si mesmo; mas, ao cair em si, na saudade finita da cisão entre criador e criatura, o homem está a braços consigo mesmo. É outra vez interrogação, e à interrogação "todo o pensar incessantemente regressa"; isto é, homem que a si regressa é interrogação que volve interrogação. Essa interrogação supõe que é uma viagem de trânsito e recurso:
"Na verdade, toda a interrogação sobre o ser do homem pressupõe que eu sou para mim um ser concreto, ser concreto que imediatamente se apreende como totalidade... Sempre, porém, quando interrogo, esse totalidade e a cumulativa unicidade do que sou e do por que me apreendo está em mim, ou como presença do que sou, ou como memória do que fui, ou como antecipação, virtualidade mais ou menos consciente do que serei. E careço então de saber se ela está apenas ou se verdadeiramente a sou... A autêntica antropologia é filosófica, quer quando interroga sobre as origens do homem, quer quando interroga sobre a plenitude do homem ou no homem, efémera embora e fugitiva no ser singular que é, cada um para si".
A filosofia é, portanto, a interrogação que o homem dirige à Verdade. Está, nesse caso, o homem separado da Verdade?
Sim e não; unido mas separado, separado, mas unido. A criatura é tanto em si como no Criador; a verdade do Criador é do Criador mas há, dela, uma com-munio na criatura. Na comunhão da Verdade, o homem quer assumir-se homem e cinde-se da Verdade para ser homem; homem, na vivência da humanidade, o homem cinde-se dela para ascender à Verdade. Interrogação é este movimento; filosofia é o pensamento que cria esse movimento - todo o homem, "móvel de relação em trânsito e recursos incessantes entre a visão unívoca e o saber multívoco do ser do tempo" - o enigma que não é dado para interrogar fora, mas que adere radicalmente ao ser. Mas é o homem, quem interroga? Que é o homem, para interrogar, se o interrogado é inefável e inefante?
O que interroga é o Espírito, "o que passa no que é e está com o ser em nós". Ou seja, o homem só tem a realidade que o Criador do homem lhe confere, mas, da cisão, sofrem ambos. Deus, porque é privado do homem; o homem, porque é privado de Deus. Só o Espírito, entre ambos, possui virtude unitiva, como na Trindade. Por ele e nele, a visão unívoca, remédio consolador de toda a cisão é efectiva e fecundativa. Uniente e unitiva. Por conseguinte do mesmo passo que é absurdo conceber o homem sem Deus, é absurdo conceber uma filosofia subsistente sem teologia. Com efeito, assim como o homem, por mais díspares caminhos que transite, ascende a Deus, assim a filosofia, "por mais que possa negar ou ultrapassar metodologicamente seus limites, ela ascende inevitável e incessantemente ao sentido da verdade suprema".
A razão, neste quadro, é humana ilusão para toda a errática humanidade. A razão confunde-se com o homem racional. "Tenho razão. Quem diz, porém, assim no nosso ouvir? - o homem". Só Deus recusa, para Si mesmo, o direito à razão. A razão é cisiva ou decisiva; seu antónimo ou sua antítese é a visão unívoca, pela qual "se diz o que une"; e da qual tudo parte, no reflexo diédico da ser e da verdade, em que o ser é para o ser e a verdade para a verdade, sob pena de nenhum ser para si. A teoria, outra forma de dizer visão, é onde o enigma é alumiado - ainda quando, por ser teoria, é assumida num limite, o limite do homem. Ilimitado porque, esse mesmo que interroga, o Espírito, é a mesma liberdade para o homem, que, na condição e no destino, é criado para a Verdade e só para a Verdade.
PINHARANDA GOMES