domingo, setembro 19, 2004

DOUTRINAÇÃO SOCIAL

- Vai o senhor escrever nova crónica? - Sim, senhor. - Progressista? - Sim, progressista. Em que sentido? - No sentido latino. - É bom esse sentido? - É o melhor, a nosso ver. Se não, é consultar os tempos primitivos do verbo progredir, e ficamos convencidos que não há melhor sentido. Ora pois. Falou-se aí muito de doutrinação social. E, como não podia deixar de ser, falou-se da doutrina social da Igreja. De feito a Igreja tem um corpo de doutrina social tão bem fundamentado no Direito Natural e nas luzes da Revelação como outro não há. A Igreja defendeu sempre o homem concreto "o homem que nasce, cresce, vive, morre e sobrevive"; para o dizermos com palavras de Unamuno. Mas houve quem entendesse a doutrina social da Igreja de maneira canhestra e esconsa. Congeminaram alguns que a Igreja, nos finais do século XIX, assomada aos ingentes problemas sociais, foi escrutinar os diversos sistemas que prometiam remédio, e debruçada sobre eles, com uma tesoura nas unhas, foi cortando erros e exageros aqui, e acrescentando acolá, para ficar num meio termo, nem carne nem peixe, vianda para todos os paladares. O que a Igreja fez não foi nada disso. Os seus filhos afanaram-se durante todo o século XIX por compreender o novelo de problemas de timbre social e por resolvê-lo no campo prático. Foram consciências de proa como Ozanam, Lamenais, o barão de Vogelsang, La Tour du Pin, Albert de Mun e tantos outros que alertaram o mundo para a embrulhada social onde a justiça ia a pique. 0 que eles fizeram foi auscultar na própria consciência o brado de protesto suscitado pelo Evangelho. A doutrina da Igreja depois exarada por Leão XIII, por Pio XI, por Pio XII, por João XXIII, por Paulo VI não se situa num clima intermédio, com sistemas avariados às duas bandas do seu discorrer. A doutrina da Igreja habita um clima transcendente que faz incidir seus raios de simplicidade actínica sobre a alma desejosa e carente dos homens que buscam e sofrem. Sabe a Igreja que o homem é chamado a construir a cidade terrestre; mas sabe por igual que nunca o homem poderá caber por inteiro nessa cidade. O mundo terreno fica-lhe sempre curto. Se o homem fosse apenas um bicho do presente, sem passado nem futuro, sem alma e sem anelo, talvez lhe chegassem a gleba e o seu castelo. Mas nem Kafka, que sabia a fundo de castelos, conseguiu lá meter e abrigar o seu personagem a meio nome, o seu José K. Mas talvez o castelo de Kafka se aureole precisamente com as cores prismáticas que irradiam já doutro mundo e tenha algo da Jerusalém celeste. Seja como for o homem é homem de castelos, de Kafka ou de Almourol...
A doutrina social da Igreja firma-se sobre constantes: a eminente dignidade da pessoa humana, a fraternidade universal, a família, a dignidade do trabalho humano. Quem quisesse tocar nas constantes para as subverter, não o alcunharíamos de progressista, seria antes um triste e improvável caranguejo, amante do às avessas das coisas. E vai o mundo cheio dessa bicharada. Formam-se e desfazem-se grupelhos, acobertam-se sob tiras da vestimenta de Carlos Marx, tinturam-nas de um vago cristianismo sem deveres práticos e vêm impar de progressistas, de avançativos, quando em verdade estão a chapinhar no ilógico de que já se ria Arístóteles, há séculos, em Estagira. É que tudo muda. Tudo não. Entra a gente com o já clássico "cabaz" no torvelinho dos supermercados. Levamos bem fixa a venerável regra três dos senhores matemáticos e o dois e dois são quatro dos mesmos. É o que nos vale para não sairmos arruinados daquelas Falperras! Os princípios do Direito Natural assemelham-se aos princípios matemáticos. Podemos, por perversão, tocar-lhes, para os desfazer. A natureza vinga-se e chama os azoinados, às vezes sob castigo, aos justos limites. Em torno da Família, vêem-se, de tempos a tempos e variadamente, inimigos numerosos, egoístas de todo o feitio, adiantados de ideologias perversas. Há descalabros, há portas forçadas, muros escalavrados. Depois... a mesma natureza humana, por aquilo que nela existe de não contaminado, volta a acender a lareira primitiva e a defender os direitos lesados. Ora a doutrina da Igreja chancela em primeiro termo esses direitos, vai no sentido mais profundo da natureza humana. Por isso o verdadeiro progresso sabe-o Ela discernir e apontar. Dir-me-ão que também há progresso na asneira. De acordo. Por demais o sabemos e já mestre Horácio, em Roma, dizia que os netos em vez de progredirem na verdade sobre os avós, avançam na tolice e com arrogância. Deus nos livre de mesa coxa e de pedra no sapato. Nem com uma coisa nem com outra se pode ser feliz. A mesa coxa é o progressismo desaustinado; a pedra na galocha é o preconceito reaccionário que também existe. 0 povo, porém, é muito sensível e dócil à voz da razão e os princípios de ordem natural têm nele um mordente que o predispõem a ouvir e a roborar a doutrinação social da Igreja. Vão-lhe lá com campanhas de culturalização dadas por indivíduos de mal com a ética, de mal com a gramática, em branco sobre a História, quiçá raposados à farta por mestres cansados de repetir as coisas! Estamos todos lembrados do que sucedeu por esse Portugal a cabo. A risotada e o convencimento de que o povo sabe mais nestas coisas que os problemáticos doutores empenados do entendimento...
JOÃO MAIA