domingo, agosto 22, 2004

Ética e deontologia nos jornais

Sempre que lhes parece conveniente os jornalistas usam puxar o lustro às divisas, empertigar-se e invocar pomposamente normas éticas e deontológicas próprias da sua nobre profissão. Apesar da utilização notoriamente interesseira dos princípios, invariavelmente convergentes com objectivos imediatos dos próprios, o estratagema costuma ter um certo efeito inibitório nos interlocutores e nas massas em geral, tolhidos perante tão elevadas preocupações.
Pelo que me toca, quando ouço a cantiga surge-me logo uma súbita vontade de rir. Circulei por esses lados o tempo suficiente para entender o código. Sei o que se esconde sob as palavras. Quando se avança com o imperativo de protecção das fontes, ligado ao famoso sigilo profissional - o que me aparece inevitavelmente é que não existia fonte nenhuma e o jornalista mentiu ou caluniou, por motivos que poderá contar à noite entre amigos, por entre uns copos e umas risadas, mas para a plateia é preciso pôr cara séria e explicar que na sua boa fé tinha todos os motivos para crer no que escreveu, induzido pelas tais fontes que não pode revelar... por respeito pelos princípios.
A deontologia tem aliás dado causa a situações verdadeiramente extraordinárias: há uns anos gerou-se grande polémica e virtuosa indignação quando um jornalista, Albarran, surgiu a exibir a dentadura em anúncios de um dentífrico, ou quando outro foi requisitado para funções em gabinete governamental. Pois nestes anos entretanto passados não têm conto os profissionais que transitam entre as redacções e as assessorias, a tal velocidade que ninguém consegue fixar a tempo se eles estão no gabinete do ministro tal ou da administração xis ou se já se encontram na redacção do periódico ou da televisão a que pertencem, ou se já voltaram a ser requisitados. Tornou-se vulgar, e não há ministro ou secretário de estado ou grande administrador corporativo que não tenha por sua conta, como dantes se tinha mulheres por conta, uns tantos assessores de imprensa e de imagem, recrutados entre os versáteis debitadores de deontologia.
A ética e a deontologia no meio em questão têm uma natureza absolutamente utilitária.
Como exemplo, não resisto a contar uma história verídica, que presenciei espantado já há anos (espantado quando assisti a primeira vez, depois dei-me conta que era a prática corrente). Como os leitores compreenderão, um motivo de preocupação quase permanente nos jornais era, e é certamente, a sobrevivência. O dinheiro escasseia quase sempre. É preciso angariar receitas. E nesta ingente tarefa ninguém se pode poupar a esforços. Consequentemente, é preciso estar atento à publicidade. Ora acontece com frequência surgir uma campanha, seja de qualquer produto comercial seja de qualquer realidade institucional, a favor da vacinação ou em prol da segurança rodoviária, de hamburgueres ou de pensos higiénicos. Importa ser contemplado com os apetecidos anúncios. Porém, não calha a todos - o orçamento da campanha é distribuído por critérios definidos pelos responsáveis, algures entre os anunciantes e as agências.
Um conhecido director, em cujo gabinete eu me encontrei casualmente na ocasião, levado por amigo comum, não era de meias medidas. Telefonava pessoalmente para quem podia decidir (não para as agências encarregadas, era directamente para quem tinha o poder de decisão) e expunha o seu caso. Cumprimentava, e a sequência da conversa, com mais ou menos rodeios, era aproximadamente esta. - Como era seu dever deontológico tinha que comunicar a Sua Excelência que o jornal estava a preparar uma peça que a ser publicada seria muito desagradável para Sua Excelência e para os serviços que superiormente dirige. Evidentemente que estava constrangido com tal situação, e custava-lhe imenso, dado o bom relacionamento institucional desde sempre existente... Mas enfim, o trabalho em causa tinha interesse jornalístico, e estava deontologicamente fora de questão interferir nas funções dos jornalistas... Pelo seu lado, estava a cumprir o que deontologicamente era um imperativo, que era comunicar a quem potencialmente seria afectado... Mas a coisa iria sair, a não ser que algum motivo imprevisto obviasse a tanto; por exemplo, está em curso uma campanha publicitária da responsabilidade desses serviços... se no jornal tivesse sido colocada a publicidade respectiva (coisa que nem estava informado devido à natural separação dos assuntos da redacção e do sector da publicidade) então gerava-se uma situação embaraçosa, que às vezes só se detecta na paginação; como Sua Excelência sabia certamente a deontologia não permite estar a publicar artigos atacando precisamente as entidades de quem se aceitou a publicidade que figura logo na mesma edição... Não, isso era deontologicamente inaceitável. Pronto, com os melhores cumprimentos, lamentando estar a contactar por assunto pouco agradável, felicidades a Sua Excelência...
Podem os leitores acreditar que isto funcionava; antes de desligar o telefone já os dois lados se tinham entendido perfeitamente; e à cautela lá era canalizada a desejada publicidade. Não há nada que os homens públicos mais receiem que a publicidade negativa. Com o tempo fui verificando que estas transacções eram o pão nosso de cada dia. E há quem viva disto!
Também vi não raro acontecer o contrário (até a nível regional e local): surgirem diatribes violentissimas, mesmo campanhas sistemáticas, contra este ou aquele, cuja razão de ser está exclusivamente ligada a problemas de publicidade. Eles não deram, logo apanham.
Podia contar muito mais, mas já vai longa esta contribuição para o debate corrente sobre o jornalismo doméstico.