quarta-feira, agosto 18, 2004

Os paraísos artificiais

A morte de duas adolescentes, vítimas da droga - uma por injecção mal doseada, a outra indirectamente, por suicídio - suscitaram recentemente abundantes comentários em todos os jornais franceses. Há um facto que atrai principalmente a atenção: o uso dos estupefacientes começa a fazer sentir as suas destruições nas camadas modestas da sociedade, que pareciam até há pouco imunes a este flagelo.
Os jovens são os mais atingidos, o que ainda põe mais sombras negras no quadro. Um jornal publicou os resultados de um inquérito realizado entre os colegas das vítimas. À pergunta: "Porque é que te drogas?" foram dadas, entre outras, estas respostas: "Não temos gosto em nada, tudo nos deixa indiferentes" e (são palavras de uma rapariga de 18 anos): "No meu estado normal, vejo as coisas tal como são; uma vez drogada, vejo-as como quereria que elas fossem".
A infeliz jovem, sem o saber, repetiu, quase palavra por palavra, a célebre frase de Bossuet: "A pior desordem do espírito consiste em ver as coisas, não como elas são, mas como se quereria que elas fossem". E, no entanto, Bossuet falava da influência das paixões entregues a si mesmas e não de uma desordem artificialmente provocada e mantida...
Quem se droga, fá-lo por sentir aborrecimento. Mas porque sente assim aborrecimento? Tenho debaixo dos olhos um artigo que diz substancialmente o seguinte: Como é que os jovens, hoje, podem e ousam aborrecer-se? Nunca os homens dispuseram de um tão grande leque de possibilidades: maior liberdade de escolha da profissão, graças à generalização e à facilidade dos estudos e, no domínio das distracções, leituras, espectáculos, televisão, desportos, viagens, etc. E isto diz-se particularmente das raparigas, anteriormente limitadas ao piano, aos bordados, ao "tricot" ou à cozinha, com raras saídas sempre acompanhadas, as quais gozam hoje de tanta liberdade como os rapazes. Depois, numa evocação da encantadora cidadezinha mediterrânica de Bandol, onde passava férias o grupo de jovens drogados a que pertencia uma das vítimas, o autor do artigo conclui: Será que não há mais nada para fazer do que drogar-se, nesta bela região onde tudo concorre para a felicidade dos veraneantes - a doçura do clima, a beleza das paisagens, as oportunidades de praticar todos os desportos terrestres e náuticos, etc.?
Daqui o paradoxo: era quando os homens tinham mais razões objectivas para se aborrecerem que eles se acomodavam melhor a uma existência aparentemente insípida e é quando eles têm todas as possibilidades de se distraírem que se aborrecem mais.
A explicação é simples. 0 aborrecimento é como o enjoo. 0 que faz o enjoo não é a falta de apetite é a saciedade. 0 aborrecimento, como o enjoo, é uma toxina segregada pela abundância mal assimilada.
A pior miséria do homem não é não ter nada, é nada desejar. Então, é levado a a procurar um remédio para a falta de apetite, não no jejum que lhe devolveria o gosto dos verdadeiros alimentos, mas em excitantes artificiais cujo efeito se atenua rapidamente, porque, não correspondendo a nenhuma necessidade natural, agravam em profundidade o mal que aliviam à superfície o que exige o emprego de meios ainda mais corruptos e mais nocivos. Assim se realiza a "escalada" da falsa evasão até ao recurso à droga, termo normal desta fuga para o irreal, onde o homem encontra um último refúgio contra o aborrecimento na dissolução da sua própria personalidade. Se, na forte expressão do catecismo, a condenação eterna consiste em perder a sua alma, os paraísos artificiais são já a prefiguração do inferno.
Demasiado bem-estar, demasiadas facilidades, demasiados tempos-livres são - dizem os pessimistas - a explicação desta decadência. Se fosse verdadeiramente assim, isto é, se o esforço das gerações precedentes que forjaram o instrumento prodigioso da prosperidade material tivesse de levar forçosamente a este legado envenenado; se o que se chama justiça e promoção sociais, ideal democrático e civilização de massas consistisse em difundir em todas as camadas da sociedade vícios anteriormente reservados aos ricos e aos ociosos; se o homem só tivesse a possibilidade de escolher entre os tormentos da miséria e o aviltamento pelo aborrecimento - então, justificar-se-iam em absoluto as perspectivas mais sombrias do futuro da nossa civilização.
Não penso que tenhamos demasiado bem-estar e demasiados tempos livres. 0 que falta a muitos é o bom modo de utilização desse bem-estar e desses tempos livres. A civilização moderna cultiva todos os nossos desejos, mas negligencia ensinar-nos o bom uso dos bens que desejamos. Ela apresenta-nos conjuntamente o necessário e o supérfluo, o útil e o prejudicial, o melhor e o pior, deixando-nos a responsabilidade da escolha. Trata-se de digerir esta abundância e de merecer esta liberdade. Ora, toda a boa digestão implica duas condições: em primeiro lugar, o discernimento, que consiste em saber escolher o que se come, e em segundo lugar a moderação, que consiste em não comer demasiado. 0 apetite cego produz o enjoo - depois do qual a doença e o médico não tardarão a impor-nos um regime incomparavelmente mais severo...
Aqui reside, com efeito, o fundo do problema: se não soubermos aliar a abundância exterior com a disciplina interior, a própria abundância nos será subtraída, porque a prosperidade económica só pode subsistir e crescer com o trabalho e com os bons costumes. E quanto à disciplina, seremos reconduzidos a ela pela força exterior da tirania, consequência invariável da desordem e da libertinagem, a qual será exercida por implacáveis médicos do corpo social, senão por cirurgiões sem escrúpulos, que não hesitarão em nos amputar deste precioso órgão de que fizemos mau uso: a liberdade.
Gustave Thibon