quinta-feira, agosto 26, 2004

O LOBO E O HOMEM

Mau. O título já me saiu errado. O homem e o lobo é que é! Aqui a ordem dos factores não é arbitrária. Mesmo o grande Camilo, que tanto relevo deu ao lobo no matagal vigoroso da sua prosa, põe-no não só depois do homem, mas varado a zagalotes na descrição quiçá mais acabada de toda a literatura portuguesa. Aqui a coisa é-nos contada por Jack London, romancista de língua inglesa. Lá pelo Norte do Canadá, onde neva meses a fio, perdera-se um homem que ia de rota batida não sabemos bem para onde. Perdeu-se e pegou de escrutinar as distâncias e a vagabundear, forçado e aflito, naquela brancura que, gradualmente, se lhe ia tornando um inferno. Tanto mais que, passadas muitas horas, voltando a cabeça, viu desenhar-se, numa lomba, o corpanzil de um lobo que o farejava e seguia. O único parentesco que os unia era a fome. Ambos acusavam extrema fadiga e lá iam sobre a neve indiferente, desenganada, inacabável...
O homem apoiava-se a um bordão que os flocos floresciam e curveteava, subindo e descendo montículos. Á roda a branquidão sem rasto, sem um sinal de vida, orlada por horizontes de cinza que era mais neve a cair. Lá atrás o lobo parava se o homem parava; e deixava descair a língua vermelha enquanto das ventas lhe saía a respiração que a fadiga fazia intermitente e soprada. Mais um esforço, e o homem, agora bem avisado de quem o iria comer se fraquejasse, esboçou uns passos animosos a que o lobo respondeu, para o não perder de vista, com uns saltos desengonçados, tradutores de muita lazeira. Uma hora se arrastou naquela teimosa contradança, até que, por fim, o homem sucumbiu e abateu-se na neve, torcido na queda como a fazer uma vírgula naquele texto de brancura estéril e mortal. O lobo veio vindo, não diremos de seu vagar, mas com as delongas que a extrema fraqueza impunha, e ao chegar junto da vítima abriu e fechou os olhorros, como já não vendo bem o remédio tardio porque suspirara e jornadeara. De facto, ainda estendeu as patorras por sobre o homem, mas já não teve forças para abrir os queixos e se refocilar. O que aconteceu foi que transmitiu à vítima uns calores como de cobertor felpudo, e o homem foi aquecendo, aquecendo, até que veio à razão e se viu na atroz companhia. Aterrado e na impossibilidade de se valer das mãos entanguidas, rompeu a morder em tão bons sítios que estraçalhou uma veia do lobo. Absorveu um pouco de sangue e cobrou acrescidas forças. Bebeu mais e, a breve trecho, já se levantava, sacava de um canivete e fazia providências de açougueiro para a restante jornada. Cortou pouco porque não queria perder o sangue da fera e, com ela de azorro abalou, neve em fora, até um altinho donde distinguiu fumos e lineamentos de casas, lá ao longe. Entrou no povoado arrastando o lobo atrás dele...
Querem alguns dizer que esta história de Jack London é simbólica e vá de traduzir a coisa para contextos humanos e lupinos. Dizem pois alguns intérpretes que a neve é a Vida, o lobo é o Desânimo, só o homem é mesmo o homem, o homem de sempre e de toda a parte. Lá vai ele, o homem perdido na neve arrastando atrás de si o cãozarrão do Desânimo que o não desfita e sonha sair do que é, um vulto de sombra e de nada, com beber o sangue do homem. Este vinga sacudi-lo e tirar forças da falência. Feito um primeiro acto corajoso, faz outro e outro, e encontra-se safo, na companhia de outros homens operosos, com o lobo morto a bater-lhe nos calcanhares. Continua a nevar, mas ele já sabe como valer-se nas perdições...
Bons hermeneutas são os que pensam assim. Mas o melhor de todos... parece ter sido quem? - Adivinhem! - Não sabem? - Eu lhes digo. Conta-se que Lenine, o intérprete e realizador das ideias de Carlos Marx, leu na última doença o livro de Jack London, e ficou cismento sobre o lobo e sobre o homem. Começou a desenhar-se-lhe na fantasia que o lobo incorporava, naquele corpanzil desengonçado e perseguidor, nada menos que o Comunismo. O homem perdido na neve é o homem de sempre e de toda a parte. Mas que o homem sacuda a besta-fera no último segundo e dobre a colina para continuar na povoação outra aventura - isso dava azia ao primeiro senhor do Kremlin e maldizia dos romancistas que deixam as coisas nesta ambiguidade. Enfim, coisas! - como diria Machado de Assis, deixando ao leitor a porta aberta para fantasiar a seu talante sobre matéria discutível que, neste caso, se desdobra entre lobo e homem, na brancura alvinitente, algures, no Norte do Canadá...
JOÃO MAIA