quarta-feira, agosto 18, 2004

INFÂNCIA NA ALDEIA

Eu, hoje, sou um homem citadino, quer queira quer não. Mas quem sou eu? E sabê-lo? O menino que eu fui (e continuo a ser, graças a Deus!) não pertence à cidade, tem mesmo certo receio das ruas, dos arruídos, das avenidas passeadas por tantos desconhecidos; e tem por igual um desdém por tanto produto inerte da indústria, por tudo quanto pende morto ao longo das portas e casulos dos estancos, das lojecas dos armazéns descomunais. Na aldeia tudo era vivo, tudo mexia e se movia em pés reais e com sangue. Um coelho era um coelho e fugia ou cofiava os bigodes enquanto manjava a serradela, uma galinha chegava mesmo a voar se perseguida, um gato arranhava e soprava se pequenino e afrontado, e todas as aves cantavam e eu conhecia-lhes o canto. Eu? Mas quem sou eu? - Somos todos os que nascemos na aldeia. Na aldeia até as árvores nos conheciam. Lembro-me de meu avô falar de certo castanheiro decrépito: "Coitado, o castanheiro do Vale da Ribeira a modos que está velhorro, qualquer dia morre de todo, se os médicos não lhe acodem! " "A tanchoeira do Vale dos Cepos está linda! Vão vê-la. Parece uma noiva!" Assim se falava das árvores como se fossem pessoas com vida animal e própria. Na aldeia o contacto com a natureza dava logo uma confiança que era fruto da união com a terra e ia propiciar um desenvolvimento dinâmico da personalidade. Na cidade, as coisas já foram trabalhadas pelo homem, já passaram pela fábrica, já se carregaram de manhas e de segredos mofinos. Até se dá uma coisa que me tem intrigado e a que os livros escritos depois do 25 de Abril não têm dado explicação cabal, como justo. Quando vou à aldeia conheço de tal maneira os caminhos que não só não tenho medo de andar por eles, mesmo que seja de noite, mas parece que lhes conheço as covas e inclinações; conheço as árvores que os orlam e até o sítio onde pilhei ninhos já lá vão muitos anos. Pois, senhores, se eu visse amanhã um ninho nas árvores verídicas da Avenida da Liberdade havia de jurar que era ninho fabricado adrede para me enganarem e não ninho de verdade com cinco ovos pintalgados na maciez do frouxel. Quase tudo na cidade é artificial, nada é primário com frémitos de vida primitiva. Por isso, a infância na aldeia avulta para mim como graça inapreciável. Acordar de manhã e rumar a quadrantes da nossa escolha - para a ribeira, para os matos orvalhados, para a eira, para os fundões dos vales frescos e topar com a sardanisca, com a felosa, com o pintassilgo, com a perdiz a tocar os tintinábulos, com o tordo discreto - isso equivale a uma escolha que supera em ensinamentos o Colégio de França e deixa a mil léguas as Universidades de Salamanca e de Coimbra, onde estão alguns mestres e uma infinidade de sebentas que só de vê-las esmorecemos!
Essa ventura que me coube de ter passado a minha infância na aldeia ainda hoje se desata em benefícios: a maior parte das imagens que me ocorrem à ponta do aparo não me vêm da cidade, dos gabinetes dos senhores ministros, vêm-me da infância matagosa que foi a minha. Pela vida fora, o homem o mais que faz é lembrar-se é da infância. A partir de certa data o homem julga que vive e apenas se lembra... "Cadáver adiado", escreveu Fernando Pessoa! Aos que nascem na cidade lamento-os, não por terem nascido, mas por vê-los logo dentro de varais ou engaiolados por esses andares, longe da fonte e do rosmaninho. O seu berço fica logo bloqueado por objectos pré-fabricados a cincar em televisores, em brutas cadeiras e bufetes! Para verem um bicho, um grilo ou um gafanhoto, fazem-no fora de horas indo ao zoológico com grande soma de encontrões e não ficam a conhecer a vida de instinto e manhas da bicheza. Ficam a julgar que os grilos não sabem música nem solfejo e que os gafanhotos mordem e têm veneno. A infância na aldeia é a primeira experiência de liberdade. Quem vive na cidade cuida, às vezes, com grande riso dos rurícolas, que a primeira experiência de liberdade foi o 25 de Abril!
Depois, a Infância é um "divino tesouro" que arrecadamos na arca dos anos e fica lá no fundo a sorrir e a brilhar. A sorrir às vezes com ironia para as opiniões dos homens importantes sentados nos cafés ou perorantes nas tribunas do Parlamento...
JOÃO MAIA