sábado, agosto 21, 2004

Arquivos da memória

No ano já distante de 1976 saiu em livro uma recolha de "Bilhetes Saloios do Templário", reunindo as crónicas que Fernanda Leitão vinha publicando no semanário tomarense, e que a tinham tornado um fenómeno de popularidade, nesse tempo só talvez comparável a Vera Lagoa.
Em homenagem à nossa correspondente no Canadá, reproduzo aqui a reacção de Rodrigo Emílio, então vinda a público no semanário "A RUA" (7/10/1976).
E esta, hein?!!!

BILHETE CRÍTICO SALOIO (?) PARA A FERNANDA LEITÃO

Fernanda Leitão:
Cedíssimo o seu nome me saiu ao caminho: a partir dos meus 12/13 anos, vezes sem conto o ouvi, e sempre a bordo da mesma voz. - E sabe a Fernanda Leitão na voz de quem?
- Ora se sabe!... Não sabe mesmo outra coisa... Pois de quem havia de ser, senão na voz, afabilíssima e tão travessa, do nosso bem-lembrado Tomaz de Figueiredo?!...
Depois... Ao depois, o Tomaz morreu-nos: andava eu, nessa altura - poeta graduado em alferes miliciano do corpo expedicionário -, por terras de Portugal moçambicano; os anos correram, entretanto, abateu-se em peso sobre a Nação Portuguesa toda esta tragédia de extensíssimas dimensões, a que o nosso Tomaz, felizmente, foi poupado: felizmente para ele, e mais felizmente ainda para os desalmados fautores de tanta traição e vilania juntas, que bem teriam de se haver com ele (olá se tinham!); e sobrevieram, de permeio, os grotescos acontecimentos de 28 de Setembro de 1974, a reboque dos quais acabei por curtir ano e meio de exílio, sem saber como nem porquê, dado que para aí não fui visto nem achado, e do ponto em que a minha aversão a Spínola já vinha de longe, não conheceu até hoje tréguas nem limites, e a mim nunca ele me mobilizaria fosse para o que fosse - quanto mais, agora, para uma manifestação de apoio a monóculo de tão curto alcance...
Adiante.
Voltei há meses a esta exígua courela lusitana. E eis que, de novo, o nome de Fernanda me saíu ao caminho: cruzo-me com ele centos de vezes ao dia; ouço-o, por assim dizer, a cada passo. - E sabe na voz de quem?
- Um pouco na voz de toda a gente.
Agraciado com a comenda de honra da Ordem d'O TEMPLÁRIO por "sua excelência a opinião pública", o nome literário da minha boa amiga anda aí de boca em boca, na boca de todas as conversas - a dar que falar, a dar que fazer, a fazer faísca, postado na primeira linha de um combate verbal de vida ou de morte, guarda-avançada de um dos mais intemeratos, e também mais talentosos, "esquadrões" da nossa Imprensa.
Piparote daqui, piparote dali, em crónicas e bilhetes de levar tudo raso à gargalhada aí anda a Fernanda a declarar guerra sem quartel a estes descaídos tempos, de impostura e vilipêndio, que a Portugal tocou viver.
Ora, estes seus saborosos bilhetes saloios - que de saloios nada têm... àparte o labéu de o serem - dizem-me, primeiro que tudo, da razão que tinha o António Ferro quando afirmava que "em Portugal não se cai no ridículo: sobe-se no ridículo! "E dizem-me, também, que estou diante de um especialista de verdades-como-punhos, com rara faculdade de saber dar o talento ao manifesto, sem olhar a quê nem a quem. Mordaz, ardoroso, desbordante, o fundibulário de mão-cheia que V. é consome-se, por aqui, à chama alta, com uma tenacidade tudo o que há de mais inabalável e com uma voltagem polémica de altíssima-tensão. Inclusivé, a temperatura temperamental a que a Fernanda Leitão escreve sempre é de tal maneira palpitante, em verve e irreverência, que só por isso dá gosto aturá-la por escrito - e aturar as insolências, impertinências e inconveniências sem nome, que não poupam nada nem ninguém. (De resto, tem V. a particularidade, extremamente tocante, de não se poupar sequer a si própria, tratando de reservar invariavelmente para si as primeiríssimas piadas, e de as suministrar a si mesma sem qualquer comiseração. E não é das notas menos cativantes da sua destemperada e nobilíssima maneira de ser, essa de V., Fernanda, começar por se insultar de morte a si própria, antes de passar a outros, e de sistematicamente guardar para si a primeira grande leva do seu bem abastecido, e engraçadíssimo, repertório de injúrias.)
Apesar de (quase) insuportável, pode crer que, à leitura, é mesmo um prazer suportá-la - suportar a criatura irascivelmente humoral que a Fernanda é -, só porque tesamente se bate sempre (e, se nem sempre com carradas de razão, invariavelmente com carradas de talento) no campo de batalha das coisas públicas, desferindo à queima-roupa as tais verdades-molestas-como-punhos, que só fazem bem - que só fazem lindamente - a quem nas produz, e que mal de espécie nenhuma fazem também àqueles que levam com elas em cheio pelas ventas.
Agindo com essa "frequência-de-blague" que sempre a caracteriza (e que lhe está mesmo na massinha do sangue!),não se ensaia a Fernanda mesmo nada em administrar - por via... postal, digamos, visto que de bilhetes se trata - toda a sorte de fulgurantes e fulminantes brutalidades que lhe vêm à cabeça. E é precisamente, nos momentos em que as maiores e mais sadias enormidades lhe saem em rajada pela boca fora, ou transmitem a cem-à-hora do bico da caneta para o papel, que a Fernanda Leitão se nos revela a grande artista, linguística e emocional, que de facto é.
Por outro lado, não deixa de ser igualmente assinalável que a sua agressividade satírica tenha entrado de serviço justamente quando nós mais precisão tínhamos de contar com ela, a fim de procedermos à instrução desse requisitório enorme, dessa enorme diatribe, desse imenso libelo, que - por todas as razões e por mais uma -importa pôr de pé, aqui e agora, para que tudo conste bem constado!
Chega de gente a redigir em bicos de mãos, e com as pontinhas dos dedos, e muito ao de leve! Chega de gente a exprimir-se de mansinho e em voz pequenina! A estas horas, importa, sim, falar forte e feio, como a Fernanda o faz: patentear todos os créditos de truculência com o vernáculo!
Em matéria de reparos a fazer-lhe, não posso dizer que tenha tirado o ventre de misérias. Mas, ao menos por agora, não havia que falar das "misérias" dos Bilhetes, que são muitas, e sim das suas "grandezas", que não são poucas...
Pessoalmente, sinto que lhe devia este bilhete, não sei se saloio se não...
De toda a maneira, bem-haja a Fernanda pelo simples facto de existir e de ser como é.
E, posto isto, vão sendo horas de me ir chegando.
Acena-lhe, amistosamente, do meio d'A RUA, o
RODRIGO EMÍLIO