quarta-feira, julho 21, 2004

Jogos de fortuna e azar

As peripécias do processo judicial conhecido como da Casa Pia já deram muito que falar, e, como era previsível, parecem longe de estar esgotadas.
A decisão instrutória de Ana Teixeira da Silva tinha provocado perplexidade e desconforto em muitos meios, sobretudo pela constatação daquilo que o Ministério Público chamou no recurso logo interposto de "contradição insanável da fundamentação". Saltava à vista um duplo critério, em que a dado passo se afirmava para justificar a pronúncia de uns que eles não tinham logrado demonstrar a impossibilidade de ter praticado os factos (exigência diabólica!)  e para fundamentar a não pronúncia de outros(s) que as provas da acusação não eram minimamente credíveis. E a confirmar o que isto indicia (que as premissas da fundamentação constituem tão só um raciocínio justificatório de decisão que existia antes, em vez de delas resultar segundo as regras do silogismo judiciário)  encontrou-se até o caso de a mesma prova ser tida por boa e credível para basear a pronúncia de um, dos tais que teriam que demonstrar a "impossibilidade" da prática dos factos para conseguir a não pronúncia, e logo a seguir ser considerada irrelevante e inverosímil na identificação de outro (que pelos vistos só poderia ser pronunciado se fosse já demonstrada a sua culpa de forma plena e cabal, para além de qualquer dúvida possível).
Em relação a este despacho, na parte em que não pronunciou, foi então apresentado o competente recurso, que subiu entretanto ao Tribunal da Relação de Lisboa.
E apareceu agora a notícia terrível e perturbante: chegado à Relação o processo passou pelo trâmite subsequente, que é a distribuição (para ver a quem calhava). Esse processo, segundo as fontes, é agora da responsabilidade de um programa informático de sorteio; isto é, já não se usa o velho método das bolas numeradas e sorteio manual, agora tudo o que houver é da culpa do programa informático.
E que deu o sorteio? Segundo a imprensa divulgou, o processo foi atribuído a Carlos Almeida, precisamente o Juiz Desembargador que há uns tempos tinha decidido a libertação do deputado Paulo Pedroso, em acórdão justamente comentado pela desenvoltura com que apreciava toda a prova disponível para se pronunciar no sentido de a desvalorizar - quase emitindo expressamente parecer a favor da não acusação ao dito arguido (nessa altura ainda não estava acusado).
Desta celebridade já não se livra Carlos Almeida - menos conhecidos são os seus laços com os actuais inquilinos do Palácio de Belém, laços esses que decerto não têm relação alguma com as opiniões expressas no acórdão que o notabilizou.
Mas o caso ainda é mais digno de registo: com Carlos Almeida, na mesma secção, uma vez que os recursos são decididos em colectivo, estão Rodrigues Simão e Horácio Lucas. Por coincidência, estes Juízes Desembargadores também se notabilizaram um deles por assinar o acórdão que libertou o Embaixador Jorge Ritto da prisão preventiva e o outro por também assinar o tal acórdão que libertou Paulo Pedroso e avançou no caminho da desvalorização de toda e qualquer prova contra ele (caminho que posteriormente seria tomado decididamente por Ana de Barros Queiroz Teixeira da Silva, o que talvez não seja surpreendente para quem saiba).
Quer dizer: o maroto do programa informático  sorteou o processo e foi  logo colocá-lo nas mãos dos únicos três juízes, de entre os quarenta e tantos possíveis, que já tinham uma opinião formada e conhecida sobre o essencial das questões submetidas a recurso.
Dado o sentido dessa opinião, não é de estranhar que logo tenham surgido vozes a insinuar que o tal programa informático se assemelha às máquinas de certos casinos, em que o prémio grande sai sempre aos mesmos.
Aguardam-se agora ansiosamente os desenvolvimentos da novela. De acordo com o Código de Processo Penal, a circunstância de estes juízes já se terem pronunciado anteriormente sobre questões intimamente conexas, e inseparáveis, daquelas que neste momento lhes são submetidas, não constitui causa de impedimento, que lhes proíba a intervenção no processo.  Porém, se considerarem que essa circunstância constitui "motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade" (art. 43º do CPP), podem os mesmos pedir a respectiva escusa...
A mim parece-me que existe fundamento sério para que a opinião pública duvide da imparcialidade referida. E para os juízes, como para a mulher de César,  não basta ser -  é preciso também parecer.
Veremos portanto se os sorteados pedem escusa de modo a salvar o que resta da credibilidade e da dignidade do processo. E ao mesmo tempo salvar também a honra perdida do programa informático que sorteia a distribuição. Veremos.
Outra possibilidade será que um dos sujeitos processuais (o MP....)  venha a suscitar o incidente processual de recusa dos mesmos juízes, com a fundamentação juridica que eles podem utilizar para a escusa...
E existe ainda a hipótese de a decisão do recurso ser tomada durante as férias dos mesmos juízes...  nesse caso pelos juízes de turno no Tribunal da Relação de Lisboa na data respectiva. O que seria uma boa forma de não haver nem escusas, nem recusas, nem decisões comprometedoras de pessoas comprometidas.  Embora evidentemente também não fosse solução que evitasse futuros comentários, controvérsias e falatórios - nessa altura por motivos diferentes. Mas disso já ninguém se livra.
Aguardamos  com viva curiosidade e expectativa.