sábado, julho 31, 2004

Dois sonetos de JORGE LUÍS BORGES

O escritor Jorge Luís Borges é mais conhecido e admirado, universalmente, pela sua obra em prosa, sobretudo a de ficção, do que pela sua obra poética.
E também é sabido que em Portugal, país com a maior produção poética por habitante, a poesia tem, paradoxalmente, muito pouca leitura.
(É divertida a experiência, já muitas vezes repetida, de quem tenta editar um livro de poesia, ainda que do melhor e mais consagrado autor, e não consegue escoar os magros exemplares, por vezes nem dados; mas se tiver uma folha de poesia em qualquer publicação e pedir colaboradores voluntários logo na volta do correio lhe surgem poetas em barda, em incontrolável explosão de reprimidos talentos).
Apesar de, ou também por causa desse desconhecimento da poesia de Borges, e mesmo tendo em conta o pouco interesse que a poesia lida desperta no leitor português típico (o tal que tem vocação para escrever, e escreve, sem nunca ter lido) ofereço hoje dois raros poemas de Jorge Luís Borges, que, estou certo, irão ao menos por curiosidade provocar algum alvoroço de descoberta em dois ou três dos pacientes que aqui aportam.
Para mais os dois sonetos em questão são ignorados nas antologias do poeta que por aí circulam em português; e creio que também é geralmente ignorado o interesse que Borges tinha bem vivo sobre a sua ascendência lusa (ele investigou, mas descobriu pouco; localizou apenas as raízes em Torre de Moncorvo).
Ora aí vão os poemas.

OS BORGES

Bem pouco ou nada sei de meus maiores
Portugueses, os Borges: vaga gente
Que projecta em minha carne, obscuramente,
Seus hábitos, rigores e os seus temores.

Ténues como se não tivessem sido
E estranhos aos trâmites da arte,
Indecifravelmente formam parte
Do tempo e da terra e do olvido.

Antes assim. Tecida a sua teia,
São Portugal, é a famosa gente
Que forçou as muralhas do Oriente

Dando-se ao mar e ao outro mar de areia.
É o rei que um místico areal colheu,
Mais os que juram que ele não morreu.


A LUÍS DE CAMOENS

Com solene indiferença, o tempo desmantela
As heróicas espadas. Traído e sem vintém,
À nostálgica pátria-tua-mãe
Tornaste, oh capitão, tão-só p`ra morreres nela

E com ela. À flor do mágico deserto,
O valor português tombou ferido
E o áspero espanhol, sempre vencido,
Ameaça desde logo este costado aberto.

Quero eu saber se, aquém da derradeira
Fronteira, pressentiste, humildemente,
Que quanto se perdeu — o Ocidente

E o Oriente, a lança e a bandeira —
Perduraria (alheio a toda a humana
Mutação) nessa tua Eneida lusitana.



As versões acima publicadas são da responsabilidade de Rodrigo Emílio. Mas - para que saibam como este vosso amigo é um poço de boas surpresas, e gosta de mimar os escassos leitores que o aturam - informo que o segundo dos sonetos mereceu também a atenção de António de Navarro, que fez a sua própria versão. Fazei pois o exercício da comparação.

A LUÍS DE CAMÕES

Sem lástima e sem ira, o tempo vela
As heróicas espadas. Pobre e agreste,
À pátria nostálgica volveste,
Ó capitão, para morreres nela

E com ela. No mágico deserto,
A flor de Portugal se havia perdido.
E o áspero espanhol, antes vencido,
Ameaçava o seu costado aberto.

Quero saber se àquém da ribeira
Última compreendeste humildemente
Que quanto foi perdido, o Ocidente

E o Oriente, o aço e a bandeira,
Perdurará (alheio a toda a humana
Mutação) com tua Eneida lusitana.


Existem como se observa escolhas voluntariamente coincidentes, e divergências importantes noutros versos. Fica à apreciação de cada um. Esclareço que a versão de "Os Borges" feita por Rodrigo Emílio e a versão de "A Luís de Camões" devida a António de Navarro estavam prontas em Janeiro de 1977 (fizeram-nas para "A Rua"); a versão de "A Luís de Camões" da responsabilidade de Rodrigo Emílio só a conheci anos depois. Penso, sem ter a certeza, que terá nascido depois, fruto da permanente busca de perfeição que caracterizava o Rodrigo, a qual o levou a trabalhar alguns dos versos do seu amigo António de Navarro (entretanto falecido), procurando uma forma mais ao seu próprio gosto.