segunda-feira, junho 14, 2004

O Silêncio da Memória

Por razões que talvez alguns leitores entendam, tenho procurado divulgar e apoiar aqui a acção da APFADA- Associação Portuguesa de Familiares e Amigos de Doentes de Alzheimer.
Ao contrário de outras instituições por que tenho manifestado estima, neste caso não estamos perante um projecto de esperança. Trata-se tão só de solidariedade. Atrevo-me a dizer que no entanto ainda é de defesa da vida que se trata. Não da vida que se levanta como uma promessa de futuro, mas certamente de vida que ao nosso lado se extingue inelutavelmente - e nos força a interrogar sobre a sua precaridade, e sobre a sua contingência, para mais e mais intensamente descobrirmos o seu valor.
Proteger e amar as crianças é fácil - corresponde ao nosso interesse pessoal no amanhã, é afinal de contas um investimento. E tudo nas crianças nos transmite a beleza e a alegria do que fomos, a nostalgia da juventude que nos sorriu.
Ao contrário, o problema dos doentes de Alzheimer, como de todos os problemas da morte, da velhice, da invalidez, da miséria e da dependência, coloca-nos frente a frente com os nossos terrores, que se expõem de súbito na fealdade grotesca de situações desesperadas, angustiantes, de que fugimos incomodados.
Por isso nas sociedades contemporâneas, que correm apressadas e ligeiras em busca da felicidade que foge à nossa frente sem jamais se deixar alcançar, esta problemática tende a ser afastada e escondida da nossa vista, como se fosse possível esquecê-la - e fugir...
Daí o heroísmo das associações que, a contracorrente, se erguem do nada para lembrar que a solidariedade pode ser desprovida de outros objectivos que não sejam minorar o sofrimento dos outros, mostrar que mesmo nas situações mais extremas somos orgulhosamente uma sociedade e não uma horda de predadores, ou uma soma de egoísmos individuais. E que a dignidade da vida pode afirmar-se também pela dedicação com que a cultivamos e respeitamos até ao fim. Os valores defendem-se aqui, na fronteira, onde a sua afirmação mais precisa de entrega total, e se confronta a toda a hora com a tentação do abandono e da derrota.
Nestas batalhas, do voluntariado e da organização ao serviço de uma ideia de vida comunitária que passa pela afirmação constante da dignidade da vida humana desde a sua concepção até ao momento da morte natural, joga-se ainda e também a nossa concepção do mundo e da vida. Quem dera que muitas APFADAs mostrassem a saúde e a vitalidade da comunidade de destino em que estamos inseridos.