sábado, maio 22, 2004

Usos e abusos

Em qualquer prisão do mundo podem verificar-se abusos. Não é possível organizar tudo de forma tão perfeita que não possa nunca acontecer que um guarda, ou vários, aproveitem um momento e um local em que mais ninguém está a ver e espanquem um preso. Como ninguém viu, depois dirão que foi necessário usar a força. Ou que o detido se autoflagelou nas grades da cela. Em todo o caso serão acções isoladas, escondidas, disfarçadas, praticadas sigilosamente e de modo a não ser descoberto. Está bem presente a consciência da ilicitude de tais actos.
Nas imagens divulgadas sobre os chamados abusos dos militares americanos nas pessoas de detidos iraquianos o que salta de imediato à vista é que se trata de algo completamente diferente. Aqueles homens e mulheres não estão a agir com a consciência de fazer algo de contrário ao sistema em que se inserem: ao contrário, riem-se e exibem-se, em poses orgulhosas. Não estão a fazer nada de forma oculta, e em algum recanto escuso: ao contrário, as situações correspondem a cenários montados, nos próprios corredores das celas onde se amontoavam centenas de presos, ou em gradeamentos de passagem. As encenações são feitas para amostra, para ser vistas, quer pelos reclusos quer pelo pessoal militar. Naquela prisão e naquele período de tempo, entre detidos, guardas e outros pode afirmar-se com segurança que passaram alguma dezenas de milhares de pessoas. Os albuns de fotografias e os videos circulavam mesmo em bases sitas na América, entre os militares aí colocados.
Para quem minimamente conheça uma cadeia e olhe para o material divulgado (o não divulgado é muito pior, segundo os senadores e o insuspeito Rumsfeld) afirmar que aquilo se passava no desconhecimento e à revelia de toda a hierarquia ali instalada, que tudo são actos clandestinos de sete soldados mal comportados, é tão absurdo como julgar que é possível passear no Rossio de elefante à hora de ponta sem que ninguém repare.
Aquilo não corresponde em nada ao padrão do abuso; parece corresponder perfeitamente a usos, generalizados e aceites.
Os tais soldadinhos desviados fazem parte de um sistema; e não foram eles que criaram o sistema, mas o sistema que os criou a eles.