domingo, maio 23, 2004

Inconveniências

Como os leitores já notaram, sou pouco respeitador das reverências instaladas.
Os bonzos, os gurus, as santidades da praça, como dizia Sá de Miranda, não me causam temor reverencial, bem longe disso. Então a espécie conhecida pela denominação consagrada de comentadores, uns que se entretêm a perorar sobre tudo e sobre nada enquanto a realidade os desmente e lhes faz figas, causam-me especial aversão.
Tal é o caso do Professor Marcelo, exemplar maior da espécie, que por aí continua imperturbável debitando opiniões pagas à peça, sempre em roda livre girando como um verdadeiro moinho de palavras. Mas não é caso único. Não é preciso falar em Pedro Santana Lopes, personalidade mais digna de enfileirar numa galeria humorística, tão caricatural se me afigura o seu gesticular de presença, necessidade ingente de quem sobrevive da atenção que consiga reunir. Consagrado agora está o santarrão da Marmeleira, meditativo e barbudo descendente do matador da bela Inês, que aplica a tortuosa mente de velho estalinista ao deslumbramento de novos sóis. Na escrita e nas formas mentais não se lhe descobre mudança - e ai de nós se um dia lhe parasse nas mãos mais poder que o resultante da palavra assalariada, de que faz modo de vida.
E não se esgota neste Pacheco Pereira o elenco mais representativo. Mesmo sem ser preciso olhar para exemplares menores que mesmo em bicos de pés não excedem a insignificância, tais como os novos escribas todo-o-terreno, tipo João Pereira Coutinho ou a desgraça de descendente de João Bigotte Chorão (notório acto falhado, de que nenhum progenitor está livre). Estes são filhos família que nem sequer têm vida para encher a prosa.
Outros há, de mais peso e maior vulto. Um que pessoalmente me serve de referência para explicar as razões da minha antipatia pela espécie é o conhecido por Vasco Pulido Valente (só muito tarde vim a saber que não é pulido nem valente).
Este passarão tem algum mérito literário, a que se arrima e encosta para encobrir o vácuo. Confesso que até a mim chegou a ludibriar, levado pelo verniz da verborreia. Sim senhor, houve tempo em que o lia com algum gosto e admiração, fascinado pela palavra escorreita, as imagens fortes e de belo efeito, a aparente coerência e harmonia do raciocínio.
A aparência da escrita, a ilusão gerada pela lógica formal do encadeamento de ideias, faziam presumir o acerto das asserções, pese embora o tremendismo que aqui e ali ressaltava.
Como geralmente escrevia sobre assuntos de que sou largamente desconhecedor, por só os observar de longe, como a generalidade dos meus concidadãos (os que não são comentadores, porque para estes a regra número um é nunca admitir que um assunto lhes é estranho), concedia-lhe a presunção que lhe tem permitido fazer carreira: julgava eu que para lá do brilho da prosa ali estivesse algum conhecimento das coisas e uma inteligência crua e analítica, ao serviço do rigor da crítica.
Eis senão quando, há anos, o famoso publicista deu a lume uns escritos sobre assuntos que eu conheço, talvez não em profundidade, como agora se diz, mas pelo menos a partir de dentro, com saber de longa experiência feito. Foi então que me quedei, paralisado, a ler e a reler o que VPV fez imprimir. A procissão de belas palavras, o foguetório das imagens, a aparente lógica irrefutável das conclusões e das ideias, estavam na mesma. Mas nada daquilo fazia sentido nenhum! Os pressupostos, os pontos de partida, os factos, eram, muito simplesmente, disparates de todo o tamanho. Não me respondam já que se trata certamente de subjectivismos, porque não é nada disso: a falha não estava na matéria opinativa, estava no campo mais objectivo possível, o terreno factual, a pura informação e conhecimento sobre os temas focados. Em termos claros: a prosa podia continuar literariamente fulgurante, mas era feita de ignorância grosseira servida com o mais descarado atrevimento. Quedei-me, por momentos petrificado, a meditar sobre o que constatava. E desabou completamente a glória de VPV. Como é inevitável, fiquei a pensar em quantas das vezes em que me tinha parecido um crítico certeiro, estando a dissertar sobre assuntos que me são estranhos, ele teria sido simplesmente tão ignorante e tão habilidoso na construção aldrabona de um texto como agora na ocasião em que calhava eu ser capaz de verificar o que ele dizia. E nunca mais deixei de o ler com esta precaução. Agora acontece por vezes lê-lo, e sentir na mesma o prazer estético de uma boa escrita; a forma está lá; mas sei que por baixo não há nada, e quanto à substância do que ele diz não presto atenção alguma. Nele tudo é postiço, pretensioso e artificial, tal como o nome.