sábado, março 20, 2004

Arquivos da memória

Por ter falado lá mais para trás em Rodrigo Emílio, não resisto em mencionar aqui uma estória – e que estória! – que apesar de bem conhecida em certos círculos restritos costuma ser convenientemente esquecida – tal é o incómodo que provoca ainda hoje.
Na verdade, dificilmente existirá igual nos anais da canalhice e da desvergonha. Foi o caso nunca visto da oportuníssima marcha atrás feita pelos responsáveis da nossa mais celebrada academia quanto à atribuição do Prémio Nacional de Poesia em Abril de 1974 – marcha atrás ainda por cima com apagamento das marcas, como vimos fazer aos índios em certos filmes do oeste.
O caso foi que o ilustríssimo júri, composto por não menos ilustres personalidades, que foram de destaque no mundinho das belas letras, tanto antes como depois de Abril, reuniu e decidiu atribuir o Prémio Nacional de Poesia à obra poética de Rodrigo Emílio. A obra em causa está reunida no volume “Serenata a Meus Umbrais”, e quem encontrar o livro pode formar a sua convicção sobre o mau ou o bom fundamento da deliberação.
O certo é que o prémio em questão, o Prémio General Casimiro Dantas, foi concedido a Rodrigo Emílio por deliberação do tal júri, e a coisa foi conhecida. Circulou nos meios literários da época. Chegou às redacções. Como é da praxe, foi até anunciada no lugar próprio, lá na Academia das Ciências de Lisboa (ai de mim, sempre tinha julgado excessivos os sarcasmos de Bocage contra a então recente instituição– e afinal ele é que tinha razão, que a jovem nasceu já com tiques de velha meretriz!).
Deu-se então o prodígio de que falo: no espaço de poucos dias a deliberação deixou de existir. O anúncio desapareceu, desapareceram todas as provas materiais. Não que houvesse nova deliberação, a retirar o prémio, ou a dar o dito por não dito: simplesmente toda a gente passou a fingir que não se tinha passado nada. Nunca houve nenhuma explicação, nenhuma palavra sobre o assunto. Apenas o silêncio, impenetrável, o recomeçar da vidinha a partir do momento anterior à tal deliberação, como se o ocorrido nunca tivesse existido – o apagamento do passo em falso, com corrector e tinta branca.
O que acontecera? Na poesia do autor nada mudara, e era suposto ter sido esta a premiada. No posicionamento político dele também nada se alterara – e era bem conhecido dos membros do júri, pois que ele faz questão de o escarrapachar em tudo o que publica. No carácter dos mesmíssimos jurados e dos responsáveis da Academia também é de supor que nada se tenha alterado – tudo leva a crer que já não tinham nenhum antes do dia 25 desse mês e assim continuaram depois.
A resposta é evidentemente só uma, e já os digníssimos leitores entenderam. Entre um momento e o outro dera-se a abrilada, e os implicados nesta torpeza entraram em pânico com a negra perspectiva de virem a ser acusados de dar prémios a um tenebroso fascista...