segunda-feira, março 15, 2004

Aditamento e esclarecimento ao postal antecedente

Contrariamente ao que tem sido dito e vulgarmente aceite, não creio que Aznar tenha perdido as eleições em consequência do massacre de quinta-feira.
Na verdade tinha começado a perdê-las em momento muito anterior. O erro capital foi realmente a escolha do seguidismo cego e incondicional perante a política de Bush para o Médio Oriente. Aznar agarrou-se a essa opção como a um passaporte para a imortalidade, a oportunidade de deixar a sua marca na História. Acreditou que daí só lhe viriam vantagens, e com baixo custo. Era fácil, era barato, e daria lucros aos milhões. E teimou nessa ronha de merceeiro guloso, quando tudo aconselhava prudência.
Recordemos os factos: na época o envolvimento da Espanha na guerra tinha contra ela a oposição da opinião pública, numa proporção que todos os estudos indicavam ser de oitenta ou noventa por cento. Aznar, mesmo assim, teimou. Pode-se fazer isto ao mandato popular? Ao povo soberano? Poder pode - mas tem os seus perigos: a gentinha compreensivelmente não gosta. Aznar teimou, arrogante. Tudo correria bem, e “eles” acabariam por vir comer-lhe à mão. A multidão gosta dos vencedores.
O facto é que com essa atitude criou internamente um problema que não tinha, uma frente de combate contra os seus concidadãos que não conseguiam sentir essa guerra como coisa sua, nem ver nela nenhum interesse próprio para Espanha.
Passado tempo tudo começou a correr mal. Proveito não colheu nenhum, que apresentasse orgulhoso aos seus concidadãos. E chegaram os corpos das dezenas de soldados mortos no Iraque. Aznar teimou ainda – nada se tinha alterado, nada tinha para alterar. E o povinho pasmou, chocado perante tamanha insensibilidade. Firmou-se aquela certeza de que “a guerra é deles, os mortos são nossos”. Consolidou-se definitivamente a cisão entre o sentimento popular e o governo.
Este comportamentos, um tanto autistas e com frequência aldrabões, parece que eram afinal a manifestação de uma tendência governativa, e não factos isolados. Basta lembrar os tristes episódios relacionados com o petroleiro “Prestige”, a gestão desonesta e trapalhona que então o governo fez de tal problema, quer tentando empurrar o lixo para os outros, quer tentando manipular a informação – tudo em similitude completa com o que se verificou agora com a crise despoletada pela tragédia de quinta-feira.
Os espanhóis foram votar no domingo fartos de um poder que se tinha voluntariamente afastado deles, que tinha feito nascer entre eles mais divisões e antagonismos, que sentiam que lhes mentia e não estava disposto a ouvi-los. O crime e aquilo que se seguiu, a mal disfarçada tentativa de capitalizar as mortes, com despudor entre o ingénuo e o desavergonhado, acabou com a paciência que ainda existisse.
Aznar quis colar o seu destino ao de Bush, vendo aí a escada para a glória, a consagração como estadista. Colheu daí a perdição.
Repare-se que não estou a afirmar que não teria existido o atentado de quinta-feira se não fosse o apoio de Aznar a Bush. Isso não posso eu dizê-lo – se nada sei sobre quem foram os autores ou as suas motivações muito menos posso tecer hipóteses sobre os seus comportamentos passados ou futuros.
Mas algumas certezas me parecem evidentes. Desde logo, não fora essa política irresponsável e aventureira e não teriam ocorrido as mortes dos soldados espanhóis no Iraque. Já não é pouco. E não fora esse apoio não se teria radicado no povo espanhol aquela convicção amarga, que se ouve e sente, de que Aznar é muito mais amigo dos americanos do que dos espanhóis (quando afinal só o tinham eleito para defender os interesses espanhóis).
Tivesse ele optado por uma posição estritamente nacional, marcando bem a distância entre a Espanha e as políticas americanas, e acontecendo a tragédia que aconteceu quinta-feira a reacção popular perante ela teria sido bem oposta ao que se verificou: Aznar teria então os espanhóis unidos a seu lado no repúdio unânime do crime, em vez de os ter virados contra si a apontarem-lhe o dedo como culpado.
O facto é que em vez da saída pela porta grande cabe-lhe agora a retirada de rabo enrolado.
Da sua mão veio este milagre: a vitória de um Sapateiro que ainda há dois anos caracolava em todas as sondagens, e era apontado unanimemente como fadado para a derrota.
Por ironia, Aznar ainda conseguiu oferecer a Bush uma derrota bem desagradável. Este tornou-se num vencido das eleições espanholas, tanto como Aznar, e o seu silêncio embaraçado bem o revela.
Será que o desastre das eleições espanholas terá consequências nas eleições americanas?