terça-feira, janeiro 20, 2004

SIDÓNIO PAIS

Na Coimbra daquele tempo em que, pode dizer-se, a cidade era a Universidade e quase desfalecia nos tempos de férias, não só na massa estudantil se distinguiam alguns rapazes de um revolucionarismo romântico e variegado, que transpunha em termos de política tropos de exaltação poética ou revoltas contra a partidocracia em que se estrangulava a Nação. Também havia entre os lentes quem se destacasse, em contraposição aos estudiosos basilarmente conservadores, pelo seu inconformismo republicano, desde o blandicioso Bernardino Machado, antigo ministro da Monarquia e par do Reino, que aderira ao partido republicano em 1903, até ao agressivo Afonso Costa, sempre em andanças por esse País fora, nas actividades de advogado ou nas sessões de propaganda política.
Naquele meio, onde o romantismo e o sectarismo se manifestavam de várias formas, Sidónio vivia sem exteriorizações que o fizessem dar nas vistas. A sua figura passava despercebida do vulgo, ainda que fosse um professor prestigioso, que sobressaíra em reuniões de matemáticos no estrangeiro, pelo saber e pela originalidade de algumas concepções na ciência dos números. Oficial de artilharia, por benefício de um regime de estudos facilitado aos moços militares, ninguém se lembrava de ter visto Sidónio Pais fardado.
Tinha fama de femeeiro e quando o viam enrolado no sobretudo discreto, o cigarrito ao canto da boca, esgueirar-se solitário ao longo duma rua, os alunos suspeitavam logo de mais alguma das suas aventuras amorosas.
Republicano e maçon - tinha na Maçonaria o nome de Carlyle - o partido republicano levou-o às Constituintes em 1911, a ministro do Fomento no primeiro governo constitucional, chefiado por João Chagas, e fê-1o transitar dali para a pasta das Finanças no ministério seguinte, presidido por Augusto de Vasconcelos.
Pertencia ao grupo chefiado por Brito Camacho, chamado dos intelectuais da República e que, na hora da dispersão partidária, seria o partido unionista.
Em Agosto de 1912 foi enviado para Berlim como ministro e ali se conservou até à declaração de guerra com a Alemanha em Março de 1917.
De regresso a Lisboa, frequenta activamente a redacção da “Luta”, já então instalada no Largo do Calhariz, onde funcionava também a sede do partido. Ali se conversava, se jogava, se discutia, e a certa altura passou a gizar-se uma conspiração para derrubar o governo, que o partido democrático dominava.
Simpatizante com o exemplo de disciplina, de organização e de trabalho, que vira durante a sua permanência na Alemanha, Sidónio era, contudo, parcial dos aliados e acreditava que a Alemanha estava condenada à derrota. A contrapor à cegueira dos sectaristas que pretendem o contrário, há declarações públicas de Sidónio e o alto prestígio de que ele gozava entre os representantes dos países aliados.
A conspiração continuava, dizíamos, a princípio acompanhada com simpatia por Brito Camacho, mas depois repelida pelo prudente chefe dos unionistas. Até que um dia, no fim da tarde de 5 de Dezembro de 1917, dois tiros de peça de artilharia deram o sinal da revolução. O impassível major de artilharia Sidónio Pais dirigiu-se calmamente para a Rotunda, dispôs ali as forças militares que o acompanharam, a par de muitos civis e dos cadetes da Escola de Guerra que quiseram segui-lo, dirigiu a movimentação dos homens e a regulação do tiro, e ao fim de três dias, vitorioso, assinava a proclamação que principiava com estas palavras:
“Cidadãos! Venceu a República contra a demagogia”.
Do ministério que se constituiu faziam parte alguns combatentes de 5 de Outubro de 1910, entre os quais o próprio Machado Santos, que viria mais tarde a ser assassinado na matança vindicativa anti-sidonista de 19 de Outubro de 1921.
Nasceu assim a República Nova, interregno que foi de um ano na barafunda da 1ª República. Sidónio Pais tentou afeiçoar o regime em estruturas mais compatíveis com as realidades da Nação, dar-lhe a ordem que lhe faltava, moralizar a administração, socorrer os necessitados, fazer cessar as perseguições aos católicos, dar à comunidade nacional um sentido que fosse efectivamente de vida.
Foi uma transfiguração total - do País e do Homem. Os portugueses sentiram que uma vida nova trespassava a Nação e Sidónio viu-se envolvido pelo abraço caloroso do Povo. Por seu lado, o paisano discreto de Coimbra cedera a uma figura desempenada e varonil de militar, tão distinta na sua presença quanto serena no comando eficiente ou na regulação rápida do tiro da artilharia. Foi um deslumbramento. O Povo sentiu naquele chefe que não fazia discursos, naquele sábio que não se empavonava de ideologismos tontos, a incarnação da Esperança que se perdera com o desaparecimento de D. Sebastião, com a derrota de D. Miguel, com a morte prematura de D. Pedro V. Eram as claridades da Libertação depois dos negrumes do desespero. Sidónio foi verdadeiramente um rei, na superioridade da visão política, na honestidade do proceder, no destemor e na galhardia da sua presença. Não foi sem razão que Fernando Pessoa escreveria depois da sua morte o poema “À memória do Presidente-Rei Sidónio Pais”.
Havia, porém, quem seguisse na sombra os passos do Presidente. Os sequazes da desordem não desistiam. Um mês decorrido sobre a revolução, já ele tinha de subir ao Castelo de S. Jorge, para orientar pessoalmente a artilharia que pós fora de combate, aos primeiros tiros, um navio revoltado. Também não faltaram as tentativas de assassínio, uma delas cometida por um rapaz de 18 anos, que por se supor ligado à loja maçónica “Pró-Pátria”, deu origem à destruição desta e, depois, ao assalto à própria sede da Maçonaria - o Grémio Lusitano.
Houve quem afirmasse que Sidónio, ao ter conhecimento do assalto ao Grémio Lusitano, dissera calmamente: - “Assinaram a minha sentença de morte”. Verdadeira ou não a frase, o certo é que, decorrido pouco tempo, um desequilibrado mental, aliás visita do Grão-Mestre Magalhães Lima, assassinou o Presidente-Rei na noite de 14 de Dezembro de 1918, na estação do Rossio.
Foi um clamor de angústia por esse País fora! 0 Povo chorava e de luto acorreu em massa ao funeral. Ninguém se lembrava de que um chefe tivesse sido tão chorado como aquele. Um choro de dor e de espanto, de incompreensão como o Poeta soube descrevê-la:

Se Deus o havia de levar,
Para que foi que no-lo trouxe -
Cavaleiro leal, do olhar
Altivo e doce?


E a Nação recaiu de novo na Noite enorme em que Sidónio a encontrara.

VASCO AFONSO