terça-feira, janeiro 27, 2004

O Cónego Alegria na cultura portuguesa

O labor de José Augusto Alegria sobre o canto coral polifónico português dos séculos XVI e XVII pode comparar-se ao de um arqueólogo que sozinho, sereno na sua determinação, se entregasse diariamente durante décadas a escavar no deserto a areia que vários séculos tinham depositado sobre um precioso tesouro artístico, de que já não restava lembrança, e após anos e anos de constante e ininterrupta escavação, descobrisse para o mundo em toda a sua magnificência o tesouro que o tempo tinha sepultado.
Actualmente, em todo o mundo culto, a polifonia portuguesa, centrada na Escola da Sé de Évora, está considerada como a mais elevada realização artística da arte musical da sua época. Entrou no repertório dos mais exigentes corais que se dedicam ao canto polifónico religioso. Os nomes de Manuel Cardoso, Mateus de Aranda, Duarte Lobo, Filipe Magalhães, Francisco Martins, Diogo Dias Melgaz, D. Pedro de Cristo, João Lourenço Rebelo, António Fernandes, António Marques Lésbio, são conhecidos e reconhecidos em todo o mundo em que os estudos musicais ainda merecem alguma atenção. Hoje podemos facilmente ouvi-los em gravações de coros estrangeiros especializados, v. g. ingleses ou holandeses. Organizam-se festivais e encontros sobre o tema. Só em Portugal continua a não existir um coro que seja capaz de executar esses trabalhos.
Mas não era assim quando há décadas atrás o Dr. Alegria começou o seu trabalho; na verdade, tudo jazia no universal esquecimento, as incompreensíveis obras musicais entregues à poeira dos arquivos sem que ninguém as lembrasse ou sequer entendesse.
Com rigor e método de ourives, o Dr. Alegria decifrou, transcreveu, anotou, estudou, e foi publicando o fruto do seu trabalho. O filão era quase inextinguível, mas ainda assim sob a sua responsabilidade saíram na colecção “Portugaliae Musica”, da Gulbenkian, os milhares de folhas de composições musicais de que ele tanto se orgulhava.
São trabalho seu as publicações, com introdução e notas, de: “Frei Manuel Cardoso (12 trechos selectos)”; “Obras várias” de Manuel Cardoso; “Livro de vários motetos” de Manuel Cardoso; “Liber primus missarum” de Manuel Cardoso; “Liber secundus missarum” de Manuel Cardoso; ”Liber tertius missarum” de Manuel Cardoso; “Cantica Beatae Mariae Virginis: magnificat” de Manuel Cardoso; “Obra litúrgica” de Francisco Martins; “Vilancicos e tonos” de António Marques Lésbio; “Psalmi tum vesperarum, tum completorii. Item magnificat lamentationes et Miserere” de João Lourenço Rebelo; “Seis motetos e uma missa ferial” de Diogo Dias Melgaz; “Opera omnia” de Diogo Dias Melgaz; “Tractado de Cãto Llano” de Mateus de Aranda; “Tractado de canto Mensurable” de Mateus de Aranda; “Discurso apologético: polémica musical” de Caetano de Melo de Jesus; “Arte de musica de Canto D’orgam, e Canto Cham, & proporções de musica divididas harmonicamente” de António Fernandes.
Para servir todos aqueles que pretendam continuar o seu trabalho, deixou organizadas e publicadas as fontes principais: “Biblioteca Pública de Évora: catálogo dos fundos musicais”; “Biblioteca do Palácio Real de Vila Viçosa: catálogo dos fundos musicais”; e “Arquivo das músicas da Sé de Évora: catálogo”.
Paralelamente foi construindo uma obra em que o seu saber se espraiou por diversos campos. Publicou em livro: “As Cantigas d'amigo e d'amor dos cancioneiros galego-portugueses: da origem poética à prática musical”; “A problemática musical das cantigas de amigo”; “Évora e a sua cultura”; “A alma da Catedral”; “História da escola de musica da Sé de Évora”; “O ensino e prática da música nas Sés de Portugal: da reconquista aos fins do século XVI”; “O colégio dos moços do coro da Sé de Évora”; “O primeiro colégio de Évora”; “História da capela e Colégio dos Santos Reis de Vila Viçosa”; “Mateus d'Aranda mestre da capela da Sé de Évora e lente de música dos Estudos Gerais de Coimbra”; “Polifonistas portugueses: Duarte Lobo, Filipe de Magalhães, Francisco Martins”; “Frei Manuel Cardoso, compositor português”; “As angústias metafísicas do Prof. Fidelino de Figueiredo e as suas soluções musicais”; “A poetisa Florbela Espanca: o processo de uma causa”.
Existem ainda trabalhos seus incluídos no “Triomphe du Baroque”, para a Europália 91, e no “Dia mundial da música 1987: conferências pela oradora oficial” (com Maria Augusta Alves Barbosa).
Sobre a sua obra está também publicado pela Universidade de Évora o volume relativo ao “Doutoramento Honoris Causa do Senhor Cónego Dr. José Augusto Alegria”.
Os incontáveis artigos que foi publicando em jornais e revistas, portugueses e estrangeiros, ao longo de toda a sua vida, são impossíveis de enumerar.
Para um apagado padre de província, que se recusava a sair de Évora e a sacrificar a suas pequenas rotinas mesmo quando lhe acenavam com homenagens e honrarias, não está nada mal.
Era da Academia Portuguesa de História, e não ia a Lisboa nem ele se lembrava há quantos anos (praticamente deixou de deslocar-se quando cessou actividade o coro “Poliphonia”, de que foi responsável); pertencia à Academia Brasileira de Música, e nunca tinha feito nada por isso; nem ele sabia quantos organismos e associações internacionais o tinham feito seu membro, mais ou menos honorário. Lembro-me de o ver sempre interessado na Federação Internacional “UNA VOCE”, que acompanhava desde a origem. Mas era caso único; e compreensível, se pensarmos que se trata de uma organização dedicada simultaneamente à defesa da música sacra, do latim, e da liturgia tradicional romana.
De resto, achou sempre mais importante o café a meio da manhã com os amigos que o acompanhassem do que qualquer solenidade mundana. Não era modesto, e tinha a noção exacta da importância do que fizera e fazia; mas era de todo indiferente a rituais celebrativos e feiras de vaidades. Não tinha a menor contemplação perante o que lhe desagradava, e a paciência não era um dos seus pontos fortes. Mas de hipocrisia nunca ninguém lhe viu vestígios.

1 Comments:

At 12:50 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Permita-me que acrescente que, à data deste artigo de opinião (2004), existiam já em Portugal vários grupos que interpretavam (e interpretam) a música polifónica portuguesa, como sejam:

Grupo Vocal Olisipo

Grupo Vocal Officium

Coro Polifónico Eborae Musica (que organiza já há 11 anos um Workshop Internacional Escola de Música da Sé de Évora, e que tem no seu reportório dezenas de obras de polifonia da Sé de Évora - para além de 2 cd's de polifonia)

Coro Gulbenkian (com a gravação de obras de Melgás).

Alguns grupos mais haverá, certamente, cuja actividade constante de interpretação da nossa polifonia vai nitidamente contra a sua afirmação ("Só em Portugal continua a não existir um coro que seja capaz de executar esses trabalhos"). Se a capacidade de interpretar tais obras poderá (ou não) ser posta em causa relativamente a coros amadores, tal afirmação será concerteza leviana perante grupos profissionais como o Olisipo, Officium ou Gulbenkian.
Felizmente que há grupos a interpretar a música dos grandes mestres portugueses de polifonia - muitas vezes fazem-no insistentemente e sem reconhecimento de quem de direito, mas ainda assim continuam. Um muito obrigado a esses grupos e ao trabalho que desenvolvem!

 

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