segunda-feira, janeiro 26, 2004

Morreu o Padre Alegria

Para os eborenses, para os antigos alunos do Liceu Nacional de Évora, chegariam as palavras do título.
Quero porém dizer alguma coisa mais. Desde Sexta-feira passada, à hora de almoço, que ando para o fazer. E todavia, mesmo aqui, no anonimato do blogue e na distância segura que a rede permite, um resistente pudor protege as dores mais íntimas e pessoais.
Na Sexta-feira, pelas 13 horas, morreu um amigo. Foi a enterrar no Sábado, após cerimónia fúnebre na Sé de Évora.
Não era um amigo qualquer. Para mim, que tenho poucos, todos os amigos são especiais; mas este era realmente especial. Era meu amigo há mais de trinta anos; e posso dizer que foi um amigo sem falhas. Apoiou-me sempre, no que eu fiz e no que não fiz; e sabem todos quantos me conhecem que isso não é fácil. Nunca pediu nem esperou nada em troca; aliás, era verdadeiramente desinteressado - o mundo não lhe importava, e eu nada tinha para lhe dar.
Para ele, que também teve sempre poucos amigos, e apesar da minha insignificância, creio que também fui um amigo com um lugar muito particular. Desde logo, fui sempre o amigo mais jovem de entre aqueles que ele contava como tal. Conheceu-me como aluno, e nessa posição o relacionamento foi complicado. Eu era um adolescente pretensioso, que entrava na vida em atitude de arrogância e desafio. Mesmo assim foi possível estabelecer uma ligação, por qualquer forma que só a providência explica.
Passámos a manter uma cumplicidade que durou para sempre, até ao momento em que partiu. E nessa prolongada cumplicidade me baseio para afirmar que era uma amizade especial. Desde os quinze ou dezasseis anos que frequentava a casa dele. Casa de pobre, a única riqueza eram os livros. Era uma casa cheia de livros. Não gostava de os emprestar; resmungava que as pessoas não têm o hábito de os devolver. Mas a mim emprestava. Nunca saía de lá sem trazer um livro na mão. À despedida atirava-me sempre: - “Leva este! Mas vê lá bem se não te esqueces de o trazer! ... E quando trouxeres esse levas outro...”
Livros e livros, que se prolongavam depois nas conversas, como cerejas, que cada um deles suscitava.
Há anos esteve doente pela primeira vez na vida. Aproveitei para o picar alarvemente, com uma inconveniência sobre a protecção que o Pai do Céu não dava aos seus servidores mais dedicados. Franziu a expressão, num jeito muito próprio, e com a temível facilidade de resposta que lhe era conhecida disparou-me: - “ Oh meu rapaz! Se o Pai do Céu desse uma protecção especial aos amigos tinha muito mais amigos.... mas também ficávamos sem saber quais eram os verdadeiros ...”
Com a profundidade teológico-filosófica da sentença me calei então; e calo-me agora também, prometendo no entanto voltar a escrever aqui sobre quem foi o meu amigo José Augusto Alegria.

1 Comments:

At 12:50 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Passado tanto tempo após a sua partida lembrei-me do meu antigo professor de moral que nós, jovens arrogantes [:(], nem adivinhámos o valor. E encontrei o seu blog! Aqui vai um comentário tardio. A mesquinhez da confrontação aos ensinamentos religiosos não foi propícia à descoberta do seu maravilhoso mundo cultural, que tanto nos teria engrandecido. Foi um priveligiado em ter recebido parte da sua "vida". Até sempre!

 

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