quarta-feira, janeiro 28, 2004

Dicionários do Diabo

Durante muito tempo, fez curso entre os portugueses letrados a ideia que uma maldição qualquer afectava sem remédio a meritória intenção de organizar para a língua portuguesa um dicionário, como as demais foram tendo.
Nasceu essa desconfiança das peripécias e azares (parecia bruxedo!) que comprometeram o bom sucesso do empreendimento pioneiro, o célebre dicionário da academia que nunca passou do primeiro volume. O volume que era dedicado à letra A. Tal significa que o famoso dicionário da academia terminou em "azurrar".
Essa falta de continuação gerou até um anedotário próprio. Todos os que na escola tiveram que ler “A Dama Pé-de-Cabra” estão lembrados que Alexandre Herculano, que não estava muito de amores com a academia, aproveitou o seu enredo para lançar uma farpa à já veneranda instituição.
Também é verdade que esta desde os primórdios estava habituado aos ataques, à má língua, à sátira chocarreira. Basta ler os versos que Bocage repetidamente lhe dirigiu.
Mas regressando a Herculano: como é sabido, no desenvolvimento da narrativa “A Dama Pé-de-Cabra” surge perante os leitores um onagro, que terá papel primordial na tramitação subsequente. O bicho era mesmo coisa do mafarrico, produto de um encantamento maléfico... mas quanto a isso remeto para as “Lendas e Narrativas”. O certo é que o animal, logo para sua apresentação, principiou por azurrar. Como é de seu natural, digo eu; um onagro, como saberão, é um jumento selvagem, um burro, um asno vulgar. Não conhece outra linguagem, nem tem outra forma de expressão.
Ora como é próprio da espécie, o onagro começou por azurrar. E nesse ponto Herculano coloca uma chamada para a nota de pé de página e nesta vá de escrever que "assim começou o onagro onde às vezes as academias acabam".
Esta estória me lembra a mim outro dicionário, que começando por aí nunca todavia daí passou.
E o caso é que os académicos não mereciam o achincalho, já que não era deles a culpa pelos sucessivos impedimentos que determinaram a falta de continuação do dicionário. Mas a graçola lá ficou a ornamentar as “Lendas e Narrativas”.