quinta-feira, janeiro 22, 2004

A CONVERSÃO

Realmente não consigo separar com nitidez os factos principais que me conduziram à fé católica. Na minha história, como na de todos, a parte principal está escondida como um extraordinário mundo que só tem visíveis as pontas de uns recifes. Entre esses, entretanto, devo mencionar um penedo de forma peculiar onde um inextinguível farol assinala a entrada de um porto.
Nessa alegoria simples, envolvendo a água e a luz acesa em cima de uma pedra, quero lembrar o meu baptismo. Minha conversão foi apenas uma volta, depois de grande viagem, depois de muitos cálculos náuticos, baseados em bússolas loucas, àquele porto antigo, à pia de meu baptismo. Em quarenta anos de viagens, muita coisa aconteceu até que eu visse novamente uma vela acesa em cima de uma pedra; e isso ocorreu em uma missa de requiem...
Muita coisa miraculosa passou perto de mim, como passa a cada instante perto de todos, mas não me lembro da maior parte e a alguns acontecimentos mais singulares receio emprestar, por minha conta, mais do que realmente continham.
Numa tarde, por exemplo, saindo de automóvel, em companhia de um amigo recente, que me procurava por causa de um amplificador, encontrei uma pedra. Uma pedra real, concreta, granítica: um paralelepípedo. O automóvel de meu amigo trepou na pedra e, com um solavanco, a porta do painel abriu-se na minha frente e caiu-me em cima do pé um missal. Poderia desenvolver esse episódio, ou insistindo na pedra como Carlos Drumond de Andrade, ou insistindo astuciosamente no missal, para mostrar a evolução do livro, lenta e gradativa, do pé para a mão.
Com bem menos do que isto existem páginas de antologia; mas, francamente, eu teria algum escrúpulo de fazer este facto render dois períodos, e até um certo instinto me adverte que seu valor literário seria discutível. O facto é que pela primeira vez abri a boca e falei alto sobre o meu problema religioso. Isto aconteceu num restaurante onde tínhamos ido almoçar, eu e meu novo amigo, para conversarmos sobre a aplicação do osciloscópio católico à cultura de tecidos. Depois de meia hora de conversa o meu amigo em tom categórico e inspirado, declarou-me: “Você precisa conhecer o Alceu”.
E foi dali mesmo ao telefone procurar em três ou quatro lugares diferentes onde estaria aquele personagem que eu admirava pelos livros, mas que me amedrontava um pouco pela posição oficial de “líder católico”. Dias mais tarde conheci-o e recebi dele um enorme serviço que no momento não soube avaliar. Ele falou-me da liturgia cristã e recomendou-me que procurasse me informar, dando-me ao mesmo tempo uma apresentação para um padre no Mosteiro de São Bento.
Nos dias que se seguiram, lembro-me bem, eu não podia passar quinze minutos sem pensar no Santo Nome de Deus. Era um assédio, um atropelo, era uma verdadeira perseguição que me acuava contra o altar. Uma onda de mérito de todos os santos, um vento de todas as orações, puxava-me o chão embaixo dos pés. E eu não sabia que o silencioso mover dos lábios de toda a cristandade cuidava de mim, dizia um segredo que me interessava, como os cochichos de gente grande nas vésperas de Natal, quando eu era pequenino.
Mais alguns dias se passaram até que ocorreu um incidente que tenho algum escrúpulo de contar. Em todo caso, conto-o: estava no meu trabalho, fazendo uma experiência com meus galvanómetros e minhas lâmpadas electrónicas, atento ao serviço, passageiramente alheio a qualquer cogitação, quando o operário que me ajudava a fazer as ligações queimou o dedo no ferro de soldar e soltou um palavrão e uma blasfémia com o nome de Cristo. Parei subitamente; olhei em volta um pouco confuso, sentindo um calor enorme no rosto. Aquela pobre blasfémia de pobre batera em cheio, como um soco no meu peito... De repente, descobri, inundado de alegria, que amava o Senhor Jesus e que em meu coração brotava um cântico novo. E, enquanto o operário chupava tristemente o dedo queimado, ainda resmungando, vesti o casaco, saí correndo sem avisar ninguém, pulei dentro de um táxi, com pressa de chegar no Mosteiro e de me atirar de joelhos diante do altar. Tinha caído do cavalo...

GUSTAVO CORÇÃO