terça-feira, janeiro 20, 2004

AOS MODERNOS

Vós não sois o que dizeis ser, o que julgais ser.
Imaginais ser civilizados e eu vos digo que sois selvagens ou bárbaros. Todo o vosso decantado progresso consistiu, até agora, na passagem do estado selvagem para a barbárie. Os inventos, os brinquedos, os trajos, os ornamentos, os malabarismos e os estuques da chamada “cultura” enganaram-vos. Bastaram revoluções, invasões, capitulações, colisões e conflagrações para quebrar a estabilidade da ordem civil e desenvernizar a maquilhagem da decência moral. Reapareceu o selvagem da pré-história, o bárbaro da idade do ferro, a fera dos bosques. Caiu de golpe o respeito pelas coisas alheias, pela vida alheia. Em nome da força, da fome, da justiça, da civilização, os homens regressaram ao furto e ao assassínio; ao furto a retalho e por atacado; ao assassínio isolado e em massa. Os continentes onde a primeira civilização nasceu e floresceu tornaram-se teatro de saques e carnificinas. Nada ficou seguro para os homens, nem os seus haveres nem a sua própria vida. A vinda dos bárbaros, no declínio do mundo antigo foi, comparada com isto, a passagem de uma alcateia de lobos amansados.
Julgais-vos, enfim, ricos e poderosos, mas sois, na realidade, pobres e débeis. A vossa riqueza não é senão um arremedo de miséria, o vosso poder não é senão uma custosa sujeição à matéria. Os povos são arrastados e perturbados por tempestades que nascem deles mas logo escapam à sua vontade; os governos são prisioneiros e vítimas de forças impetuosas e procelosas que não conseguem dominar; os indivíduos são batidos, percutidos e quebrados pelas marés da história como argueiros e grãozinhos pelos turbilhões de um furacão arrebatador. Conseguistes subjugar algumas forças da natureza, mas as máquinas utilizadas para tal efeito tornaram-se os vossos senhores; desencadeastes as energias adormecidas da terra e agora, como outros tantos magos aprendizes, não sabeis refreá-las e domá-las. Forte é a vossa vontade, mas desordenada e emaranhada na confusão das paixões, das ilusões, das ambições, das razões e das intenções que acabou por suscitar monstros insubjugáveis, deprimiu e suprimiu a primitiva liberdade.

Giovanni Papini (in “Cartas aos Homens do Papa Celestino VI”)