sexta-feira, dezembro 26, 2003

TUDO É PÓ

Abordando o problema da matéria sob o ponto de vista do Uno e do Múltiplo, que para William James, acompanhado de Paul Grenet, é um dos testes cruciais do pensamento filosófico, chegaremos à conclusão de que o materialismo fica embaraçado, não diante da hipótese de Deus e de anjos, mas justamente diante da mobilidade do ser que, nos dizeres dessa filosofia, tem a hegemonia do Universo. É o próprio ens mobile que deixa o materialista tonto e que o obriga logicamente a seguir o caminho do mecanicismo, que nega a mudança intrínseca e profunda, concedendo apenas a mobilidade extrínseca, enquanto, no lado extremo do problema o espiritualista Bergson, que libertou Maritain e Raissa da opressão do empirismo, afirma que a mudança completa e profunda é a principal e até a única realidade.
O materialista coerente, como já vimos em conversas anteriores, é obrigado a pensar num elemento fundamental que produziria todas as formas do Universo pela multiplicidade e pela variedade das posições dos grãos de matéria, e assim explicará as mudanças extrínsecas pela variação de arranjo das mesmas partículas, resolvendo destarte o antigo paradoxo do devenir, pelo qual tudo muda ou pelo qual da mesma coisa se diz que não mudou e no mesmo momento se diz que mudou. Quando um dia apareceu no limiar da minha porta um cidadão barbado, meio calvo, que no decorrer da conversa revelou-se adepto do marxismo e que, após a primeira hesitação, identifiquei como o menino deixado trinta anos atrás num pátio de colégio, o meu primeiro pensamento foi este: Como o Inácio mudou! Mas o primeiro elemento da proposição diz que Inácio é Inácio e continua a ser Inácio; mesmo porque se não houvesse identidade do sujeito que mudou eu não poderia dizer que mudara. O caso seria de substituição e não de modificação.
Qualquer estudante de Filosofia sabe que foi esse o grande problema que Aristóteles resolveu com a famosa fórmula da composição de todos os seres criados em potência e acto; e não ignora também que essa composição de todos os seres, para ter sentido, deve estar pendurada no Ser sem composição e sem vicissitudes, que os filósofos chamam de Acto Puro e os crentes chamam de Deus. Assim, na linha filosófica aristotélico-tomista a potência exprime a pobreza, a indeterminação, um ser que ainda não é o que será ou pode ser, uma espécie de nada relativo, enquanto o acto exprime a riqueza e a plenitude do ser. Será, portanto, na direção oposta às puras potencialidades da matéria que encontraremos, segundo aquela escola de pensamento, o Ser pleno explicador e garantidor de todos os seres.
O Materialista segue o trajecto oposto e vai buscar na própria matéria a imutabilidade e a simplicidade fundamentais que devem dar a razão de ser de cada coisa e de suas transmutações. E o materialista mecanicista, que é o mais coerente e sincero dos materialistas, em face do problema das mudanças, explicará todas as transformações do universo pelo movimento das partículas que o compõe e pelas posições que tomam em determinado instante. Mas para tal pensamento ter consistência terá de se deter diante de tais elementos fundamentais ou de tais átomos, que serão átomos, indivisíveis e inquebrantáveis, e sem nenhuma composição. Digo que terá de se deter por achar indispensáveis esses grãos de matéria pura, explicadora por suas potencialidades de todas as formas observadas e garantidora de todos os seres pela imutabilidade, pela eternidade, pela infinita dureza e indestrutibilidade dos grãos. Será preciso dizer ao leitor que esse atomismo, o dos antigos e dos modernos materialistas, nada tem com a Física corpuscular, onde os corpúsculos, na medida em que são alguma realidade corpórea, continuam a ter matéria e forma como qualquer ser da escala humana? A rigor, e filosoficamente, opõe-se o átomo etimológico e filosófico ao átomo composto e explosivo que assusta o mundo de hoje. Mas não deixa de ser estranho o destino do pensamento que chega a ver no mesmo elemento fundamental a pura potencialidade e ao mesmo tempo o ato puro. Sim, esses grãos indecomponíveis e imutáveis que são o ser potencial de todo o universo seriam, para si mesmos, na sua própria existência inevitável, indiscutível, o ser em acto puro.
Essas considerações um tanto áridas nos levam à conclusão já anunciada em outra conversa. O materialismo, sobretudo o materialismo mecanicista, parecendo ser uma visão mais fácil, uma aproximação mais tranquila de todas as coisas, é na verdade uma desordenada extravagância que vai encontrar um deus uno e infinitamente múltiplo nos átomos. Ao contrário do que geralmente se pensa — desde que se ultrapasse a linha do grosso bom-senso destorcido, que mais deveríamos chamar mau-senso — cabe o ónus da prova aos que negam a espiritualidade de Deus. As provas positivas, arduamente elaboradas pelo pensamento filosófico, são títulos de nossa nobreza e mais servem para provar a largueza da alma que conhece do que a grandeza do objecto conhecido, porque esse objecto — alma espiritual, anjo, Deus — já era conhecido, em termos de profundas intuições ou de fé, antes de terem a existência demonstrada. Têm também para nós as demonstrações filosóficas, ou valor próprio de claridade intelectual que confirma as intuições crepusculares. Seja porém como for, se o problema se coloca em termos polémicos é indiscutível que o ónus da prova cabe aos materialistas. E se não possuíssemos o compêndio de disparates já publicados pela intemperança intelectual de tais pensadores, poderíamos imaginar a estranha aventura do espírito que parte para a cruzada que consiste na sua própria negação. Convém lembrar aqui o grande paradoxo histórico: foi na corrente cientificista e racionalista derivada de Descartes que tomou corpo a doutrina que nega a espiritualidade da alma humana e a filosofia que reduz a pó o filósofo em plena actividade de filosofante: tudo são partículas que se movem ou mudam de posição ou de velocidade. Tudo é pó.
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Esta conclusão aparentemente coincide com aquela que a Igreja faz na Quaresma, para lembrar ao homem que é pó e ao pó volverá. Na verdade, porém, o Verbo de Deus só nos lembra nossa miséria para avivar em nós a humildade diante do Senhorio de Deus, e a gloriosa convicção que somos muitíssimo mais do que o pó de nossa carne.

Gustavo Corção