segunda-feira, dezembro 29, 2003

O Senhor dos Anéis

Deixando para trás Fernando Namora (e esquecendo mesmo que ele enquanto andou cá pelo Alentejo apanhou demasiado Sol naquela tola, e ficou depois algumas décadas a sonhar com outros sóis pouco recomendáveis), não resisto a lançar alguns comentários sobre "O Senhor dos Anéis".
A tremenda popularidade dos livros, e sobretudo dos filmes, causa-me sincero regozijo. O autor e a obra foram uma paixão de juventude. Nesse tempo pouca gente tinha ouvido falar em Portugal de Tolkien e do "Senhor dos Anéis" - embora o autor já tivesse morrido de velho e a obra já contasse umas boas décadas.
Creio mesmo que terei sido o primeiro a escrever num jornal português de grande circulação sobre o impacto que a obra estava a conseguir nos meios restritos que então a veneravam (muito antes de existir qualquer edição portuguesa).
O meu entusiasmo era conhecido, e lembro-me a propósito que o Eurico de Barros, então estudante de Letras, fez uma visita turística a Londres e no regresso me presenteou com um livrinho de Tolkien que tinha comprado lá para esse fim - acrescentando-lhe uma dedicatória bem humorada. O livrinho era "On fairy tales" - o velho Tolkien também se tinha perdido a estudar os contos de fadas, e o Eurico entendeu que a obra era ajustada às fantasias que me ocupavam a mente.
Ainda bem que, passado tempo, o autor e a sua obra máxima lograram aceitação geral e sucesso universal. A glória veio tardia, mas veio, e é justa.
Mas o fenómeno intriga-me. Então as interpretações e as explicações que costumam acompanhar as grande obras? Onde estão os intelectuais orgânicos, os "maitres-a-penser" sempre disponíveis para nos dizer o que devemos e o que não podemos pensar? Circulam por aí já teorias elaboradas sobre signos e significados do vasto mundo de Tolkien?
Com efeito, a questão é premente.
Como compatibilizar uma visão racionalista, mecanicista ou materialista do mundo com o universo mítico e espiritualista de Tolkien?
Como harmonizar as convicções relativistas e indiferentistas com aquele tremendo e agónico combate entre o Bem e o Mal?
E aquela epopeia guerreira encaixa-se nas concepções folclóricas tipo "make love not war"?
A presença obsidiante da Tentação e da Queda - suportam optimismos antropológicos?
Aquele mundo providencialista onde há Heróis, Eleitos, Ungidos, destino e missão, pode harmonizar-se com uma cosmovisão igualitarista e consensualista da sociedade?
Aquelas narrativas onde a acção é sempre serviço e sacrifício têm alguma coisa em comum com uma visão hedonista da vida?
Ardo em expectativa à espera das iluminações que decerto não faltarão.