domingo, dezembro 28, 2003

Natal

Estamos em véspera de Natal. O movimento das ruas dobrou; triplicou. Os automóveis buzinam, imobilizados nas esquinas entupidas; as lojas regurgitam; os vendedores não têm mãos a medir; e as pessoas, os clientes, entram, saem, escolhem, regateiam, comprimem-se, acotovelam-se, mas sorriem, sim, sorriem - porque parece que todo o mundo está muito contente.
Todo o mundo, menos o velho Scrooge. O amargo e triste usurário só pensa em si mesmo, e não lhe sobram ouvidos para as vozes cordiais que cruzam os ares com votos de Natal venturoso. Christmas! Merry, merry Christmas!
Passa o funcionário letra O, o funcionário letra N, o funcionário letra M; e passam as esposas, as virtuosíssimas esposas dos funcionários, cada uma com sua alegria embrulhada num papel sarapintado de sinos e velas. Boas festas! Boas festas! Todo o mundo está alegre. Todo o mundo parece ter na alma hinos e luzes.
Todo o mundo, menos o velho Scrooge, que vê com olho mau e oblíquo essa inconveniente profusão de gastos inúteis.
As mães se cruzam com as mães; tias esbarram em tias. Anda no ar um milhão de cálculos secretos envolvendo bonecas, espingardas e triciclos. E o cálculo mitiga o júbilo. As mães do padrão M param pensativas nas portas das casas de brinquedos; e ali na porta fazem-se mais densos cálculos, as cifras, as suputações, as somas, as subtrações. A espingarda então encolhe e vira revólver de rolha; ou diminui ainda mais e se reduz a um engenhoso brinquedo de matéria plástica, que só funciona bem, como ficará provado mais tarde, nas mãos habilidosas dos vendedores. Os sonhos, tratados com o reagente das cifras, dão um precipitado cor de cinza. Os vendedores embrulham em papéis sarapintados a espingarda que virou matéria plástica. Embrulham decepções. Caixa! Caixa! Caixa! O triciclo fica para o ano que vem, quando vier o aumento. Aliás, Toninho ainda é pequeno para o triciclo. E o vendedor embrulha aquilo em que se transformou o triciclo. Caixa! Caixa! Mamãe, olha ali, que amor de boneca! E a mãe puxa a menina padrão M que deseja a boneca padrão O. Caixa!
O brinquedo resultante da judiciosa combinação entre um sonho e um orçamento vai agora escondido no embrulho; e a mãe M, longe dos outros brinquedos da loja, que doem pela comparação, reata o fio do sonho. Raciocina para reconquistar a pureza do sonho. Toninho vai gostar, Toninho vai ficar radiante.
Passam embrulhos; embrulhos levando pessoas pelo dedo. Vejam! Apareceu no sangue da cidade esse acúmulo de células imaturas. Onde está a espingarda? onde está o triciclo? Viraram mieloblastos, detritos de sonhos, jovens, bastões, segmentados. Façam o exame de sangue da cidade!! E eu quero ver o jogo fisionómico do dr. Aquiles quando abrir o papel.
Boas festas, dr. Aquiles! Merry, merry Christmas! Todo o mundo está contente. A mãe de Toninho, a múltipla mãe do colectivo Toninho, que mora em Copacabana, em Itapiru, em Jacarepaguá, divide-se, ramifica-se, decompõe-se numa densa multidão de dorsos femininos. Os bondes passam cheios de pernas, pernas letra M, pernas letra N, e os festivos mieloblastos embrulhados com sinos e velas entram a circular pela cidade. Todo o mundo está contente, menos o velho Scrooge.
Mas será mesmo verdade, ó amável Dickens, que todo o mundo esteja contente? E a espingarda que virou celulóide? E o triciclo que ficou para o ano que vem? Embora antipático, quem tem razão é o velho Scrooge. Embora mesquinho, ele ao menos compreende uma coisa de capital importância: que é muito difícil dar. É a última coisa que se aprende; e é a primeira que se exige para um mundo habitável. E é por isso que eu vejo com melancolia essa procissão de equívocos embrulhados. Quem terá o coração tão duro que dê uma pedra ao filho que pediu um peixe? Mas a dificuldade se resolve desde que se embrulhe a pedra em papéis festivos; e as mães letras L, M, N, conseguem convencer-se de que a pedra é uma nova espécie de peixe. E é isso que dói, e como dói! A alegria falsificada, a alegria que virou matéria plástica.
Não digo que seja impossível uma alegria verdadeira, uma alegria de criança, com um brinquedo truncado e pobre. Não. É claro que uma alegria de criança pode nascer à toa; é claro que um pedaço desconjuntado de celulóide pode fazer feliz uma criança; é claríssimo que ainda não conseguiram secar, por mais que o tentem, as fontes vivas da infância, as riquezas de um coração menino que com pouco se contenta. Não. Continuem assim, por séculos e séculos, a enganar as crianças e os pobres. Sempre haverá pobres; sempre haverá crianças. Mas não é isso que mais me aflige. É também evidente que escolheram o dia do nascimento de Jesus para infligir uma festiva humilhação à pobreza. Basta pensar no Natal dos Pobres. As ruas se enchem de miseráveis em filas nos portões dos palácios. Se chove, fica ainda mais perfeito o espectáculo. Mas não é isso, ó Dickens, que mais me dói.
O que me dói é a falsificação, é o espírito de praxe que preside as tristes festividades dos homens. É dia de dar. A folhinha marcou o dia de comprar presentes. A vizinha da direita comprou, a vizinha da esquerda comprou. Eu preciso comprar. É praxe. É uso. É costume. E todo o mundo fica contente de entrar na equação de um uso, de um costume. Da praxe. Todo o mundo, menos o antipático Scrooge.
Que Natal é esse que acentua as injustiças, que exaspera as paixões, que alarga os equívocos? Admitamos a festa da cidade, do país, do género humano. Admitamos a celebração de algum feito que a todos interesse. Admitamos que depois de amanhã o mundo se lembre da natividade do Salvador, que nasce de uma Virgem, na gruta de Belém, porque não havia lugar para eles nas hospedarias. Mas nesta hipótese, meu caro Dickens, eu exijo, em nome da mesma lógica que me mata, que a alegria seja de uma outra ordem, e que não dependa assim, em primeira linha, dos cálculos e dos orçamentos. Há alegria e alegria; há graus de alegria; espécies de alegria: desde a cócega no pé da criança até a paz que nasce de uma concórdia perfeita; desde a estrepitosa bomba cabeça-de-negro até a gratidão silenciosa que desabrocha na quietude das almas.
Exijo uma outra alegria, apoiada sem dúvida nas coisas visíveis, no celulóide se quiserem, porque os homens vivem de sinais visíveis. Mas apoiada de leve, como convém às coisas do puro amor. Não é assim que fazem os namorados quando guardam pequeninas lembranças? Não seria melhor dar de presente pétalas de rosas, leves pétalas, levíssimas hóstias de amizade perfeita?
Chamou-me a atenção o diálogo travado à porta de uma casa de brinquedos. A dama de azul, majestosa e autoritária, discutia com o vendedor obsequioso, que já dava mostras de impaciência. Passando de um para outro, ora nas mãos profissionais do vendedor, ora nas mãos finas e cheias de anéis da abastada freguesa, uma bonequinha preta de olho arregalado, e com uma cestinha de bananas na cabeça, parecia alheia à discussão:
- É muito cara.
- Foi remarcada, madame. A senhora não encontrará uma boneca destas por menos de cem cruzeiros... Mas se a senhora quiser temos outras bonecas mais baratas. Qual é o seu orçamento, madame?
A dama de azul franziu ligeiramente os sobrolhos.
- É para uma menina pobre. A filha da empregada.
Ela não podia, evidentemente, marcar em cem cruzeiros o limite de "seu orçamento" como queria o desajeitado vendedor; assim, dizendo que era para uma menina pobre, explicava-se melhor. Não era para ela; para filha dela, para sobrinha dela, para alguma criança de sua espécie, dela; de sua qualidade, de sua classe, de sua condição: era para a filha da criada.
O vendedor compreendeu logo que o problema se deslocava para um novo sistema de micro-unidades. Ninguém, evidentemente, mede em quilómetros o diâmetro de um glóbulo de sangue, nem mede em milímetros a distância de Sírius. Há o mícron para o glóbulo e o ano-luz para os astros. Tudo tem suas dimensões, suas escalas adequadas, neste harmonioso universo.
Enquanto o novo sistema de unidades se estabelecia entre o vendedor e a majestosa senhora, eu olhava na vitrina um urso de astracã que comigo jogava o sério com seus olhos parados de contas azuis.
- Urso, amigo urso, diga-me, por favor, onde é que esconderam o menino Jesus?
O menino Jesus estava na esquina de Assembleia com Quitanda, no colo de uma mendiga. Ninguém desconfiava. As pessoas que passavam (Merry, merry Christmas) não viam o menino Jesus instalado no seu nicho de miséria. E tinham razão. O menino Jesus escondia-se no pobre. Amarelado, encardido, manchado, dir-se-ia que a mendiga o tirara de uma lata de despejo.
Quando eu passei, ele tentava pegar a chupeta caída nos trapos sujos da mãe. Levava-a à boca, sem jeito, metendo os dedinhos nos lábios, de onde corria uma saliva clara e inocente. A mãe, de braço estendido, pedia uma esmola pelo amor de Deus. Seria mãe de verdade? Dizem que se alugam crianças para mendigar. A mendiga é falsa. A criança é falsa. A mãe é falsa. E dessa falsidade todo o mundo desconfia.
A chupeta caía de novo e perdia-se no seio miserável. Nesse momento, quando eu já me afastava, o menino olhou para mim. Seus olhos pousaram em meus olhos. Sim, lá dos abismos de sua inocência seus olhos subiram. E o menino sorriu. Para mim!

Gustavo Corção